Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

13/03/2018

A farsa na sua melhor forma em “O bem amado”, de Dias Gomes

Por Carolina Prospero

Farsa sociopolítico-patológica em nove quadros, de acordo com a descrição do próprio Dias Gomes. O Bem Amado é uma farsa elaborada, mas carrega tanto do “real” que às vezes parece difícil saber onde a farsa começa.

A farsa da peça
Ridendo castigat mores: rindo se castigam os costumes. A frase, atribuída ao escritor francês Molière, explicita uma das principais funções que as peças teatrais têm carregado ao longo dos séculos. Na nossa tradição de língua portuguesa, esse propósito foi atingido de forma competente por Gil Vicente, ainda no século XVI, e por Martins Pena, no XIX, dois grandes dramaturgos que souberam ridicularizar os comportamentos mais reprováveis da sociedade em que estiveram inseridos; mas recebe um tempero todo atual e arguto nas mãos do dramaturgo Dias Gomes, particularmente em seu texto O bem amado.

Escrita em 1962, a peça foi encenada pela primeira vez apenas em 1969, em Pernambuco. Considerando o contexto político do país após o início da ditadura militar, em 1964, é fácil imaginar que o texto ácido tenha enfrentado algumas reticências. No entanto, após algumas montagens, a peça transformou-se na primeira novela a cores produzida pela Rede Globo, adaptada pelas mãos do próprio Dias Gomes. Em sua versão televisiva, foi exportada para diversos países, embora internamente tenha sofrido com a censura governamental, que atuou de forma dura em alguns episódios.

O autor considera O bem amado, em seu subtítulo, uma “farsa sociopolítico-patológica em nove quadros”. A definição, tão cheia de graça, já antecipa alguns dos principais elementos do texto. A começar pelo gênero farsa, que tem suas origens na Idade Média. A palavra nasce a partir do vocábulo farcir, que significa rechear, devido à presença desse modelo de encenação primeiramente no interior dos mistérios religiosos, peças de caráter mais sério e elevado. No entanto, aponta-se também para o verbo farcer como gênese do termo, com o significado de enganar, aludindo-se a uma das mais deliciosas características desse tipo de texto teatral: o sucessivo jogo de trapaças e armações entre as personagens, com o qual Dias Gomes lida com desenvoltura.

O enredo da trama favorece esse desenvolvimento. Na pequena cidade de Sucupira, o político Odorico Paraguaçu é eleito prefeito sob a premissa de construir um cemitério na cidade; no entanto, depois de gastos os recursos para tal, desviados de áreas muito mais relevantes como iluminação e educação, ele é surpreendido pelo fato de que ninguém morre para que o local seja inaugurado. A partir daí, Odorico utiliza de diversos expedientes questionáveis para tentar causar um falecimento na cidade, como trazer um doente terminal de outra cidade ou nomear um antigo matador para o cargo de delegado. Ele manipula as personagens com sua oratória exagerada e maliciosa, o que, além de soar divertido, faz a trama andar com as suas constantes reviravoltas, que ora favorecem o manipulador, ora o surpreendem de volta.

A farsa e o verbo
Além disso, o dramaturgo se aproveita de outra possibilidade oferecida pela farsa, que é a de assumir certo caráter sociopolítico, como enuncia o subtítulo, para escancarar um Brasil cruamente atual. Os discursos de Odorico, construídos a partir de palavras inventadas a fim de soarem pomposas (como as incríveis “prafrentemente” e “agoramente”), expõem a tradição de políticos que buscam atingir o poder manipulando as massas mais deslumbradas. Cativando a audiência com seu exagero verborrágico, Odorico encontra quase um passe livre para as suas maquinações, sempre sob um demagógico discurso de atender aos interesses do povo. O trecho abaixo é um exemplo dessa direção:

DIRCEU – A prefeitura tem um terreno…

ODORICO – O terreno só não resolve, é preciso dinheiro para o muro, as alamedas, a capela.

DIRCEU – (Examinando um processo) Parece que há um restinho de verba da água.

ODORICO – Da água?

DIRCEU – Para consertar os canos.

ODORICO – Diz isso aí?

DIRCEU – Não, aqui só fala em obras públicas de urgência.

ODORICO – O cemitério também é uma obra pública de urgência. É ou não é? (Irônico) De muita urgência…

A peça mostra, com toda a força da caricatura elaborada, o quanto o Brasil tinha (ainda tem?) abertura para esse tipo de abordagem na vida pública. Odorico é cínico, malandro, maldoso, ardiloso, vaidoso – e mesmo assim convence sistematicamente parte dos incautos cidadãos de Sucupira.

A única figura que faz oposição aberta ao prefeito é Neco Pedreira, jornalista de uma gazeta sensacionalista. Dias Gomes deixou claro que a inspiração para o personagem foi Carlos Lacerda, figura notável do mundo carioca do período. Inicialmente dono de jornais, Lacerda chegou ao posto de governador do Rio de Janeiro; seus discursos inflamados são considerados responsáveis, ao menos em parte, pelo suicídio de seu opositor Getúlio Vargas. Toda essa agressividade midiática foi colocada na figura de Neco, a única voz de evidente contraste ao prefeito, embora ela soe irritante e pirracenta, como é de se esperar, considerando o olhar de Dias Gomes sobre o homem responsável pela censura de alguns de seus textos. Observa-se esse tom no trecho abaixo:

ODORICO – Você não pode fazer isso.

NECO – E por que não? Sou um jornalista. E Zeca Diabo é notícia. Vai ver como vou vender jornal. Graças a você. Nunca esquecerei dessa atitude fraternal. Creio, aliás, que estou prestando um serviço à municipalidade, publicando a biografia de um dos seus filhos mais ilustres.

Já os discursos políticos pesados e impactantes de Lacerda foram direcionados à personagem de Odorico, conforme explica o autor, o que demonstra mais uma vez a sua intenção de contemplar elementos que o incomodavam na sua realidade.

Sobre essa questão, aliás, cabe dizer que o enredo da peça, por mais bizarro que possa soar, foi inspirado num caso real: o autor conta, em sua biografia, que a história do cemitério que não consegue ser inaugurado ocorreu de fato no interior do Espírito Santo e lhe foi narrada por um amigo e cronista de jornal. É um dado interessante, já que um dos grandes recursos da peça é justamente a utilização do absurdo enquanto maneira de gerar o riso. As farsas costumam ser peças leves, que buscam entreter, e apesar de toda a carga política e crítica colocada nesse texto – e aqui se chega ao último termo do subtítulo, “patológica”, dado o grau de desfaçatez do comportamento de Odorico – a diversão é dada pelo ridículo das situações, tão absurdas que parecem impossíveis, apesar de, como visto, terem um fundo considerável de veracidade. A esse respeito, diz o próprio Dias Gomes em uma entrevista ao jornal Folha de São Paulo em 1998:

Folha – O uso de temas insólitos e surreais em sua produção, como em “Saramandaia” e “O Bem-Amado”, é um gosto pelo realismo fantástico ou são lembranças transformadas de sua infância?

Gomes – Isso vem do entendimento de que é impossível tratar de um país como o Brasil sem a conotação do absurdo. Nós somos um país onde o absurdo faz parte do cotidiano. É impossível você questionar ou fazer uma reflexão sobre o Brasil de uma maneira estritamente realista.

A percepção de Dias Gomes mostra um autor que sabe tirar o melhor de seu texto, aproveitando todos os recursos de um gênero aparentemente simples como a farsa, que tem como objetivo divertir e criticar ao mesmo tempo. Se por um lado nos faz lamentar a realidade abordada, ainda tão atual, por outro nos anima, mostrando que os nossos autores, como bons brasileiros, podem até perder a compostura – mas não perdem a piada.



Este conteúdo foi acessado em 13/03/2018. Ele foi publicado em 03/01/2018, no site Homo Literatus. Todas as informações nele contido são de responsabilidade do autor.
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