Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

04/11/2013

´Nem todo livro é literatura´

Entrevista ana maria machado
Maurício Meireles

A autora comenta sobre as últimas "polêmicas literárias": discursos em Frankfurt, biografias e seus últimos dias de ABL

De onde veio a ideia para o novo livro ("Enquanto o dia não chega", editado pela Alfaguara)? E por que situá-lo no século XVI?

É tão difícil saber de onde veio a ideia, porque ela é sempre diferente. Tem raízes numa pesquisa que eu fiz. Quando eu li um pouco sobre grumetes e jovens marinheiros largados na costa brasileira, ou que fugiram pra ficar aqui, fiquei pensando nesses adolescentes em um Brasil que não existia ainda. Eu queria que houvesse uma variedade de personagens. Então, pus no século XVI. Além disso, tinha outra ideia, que era um desafio linguístico: a vontade de escrever uma história em que se levasse algum tempo na ambiguidade, sem o leitor saber o gênero do protagonista. Era uma desafio linguístico escrever sem ser no masculino ou no feminino.

Sobre a lista de escritores escolhidos para representar o Brasil na Feira de Frankfurt: "Você não vai conseguir que eu me pronuncie sobre lista, porque eu não sou autora de lista. Não sou crítica de lista, leitora de lista"

Nas últimas semanas, debateu-se muito a questão das biografias. O que a senhora achou do pronunciamento de Roberto Carlos?

Acho que o debate está ficando mais racional. Acho que tem que se publicar a biografia do jeito que ela é escrita. Se houve alguma calúnia, o caluniador deve ser punido, e rápido. Liberdade de informação e privacidade não são incompatíveis. O que é incompatível é a mentira. Mentir é que tem que ser punido. Veja o exemplo do caseiro Francenildo (que revelou encontros do ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci com lobistas numa mansão de Brasília). Ele não era filho do homem que o criou, e ninguém sabia disso. Quando se entra no sigilo bancário do Francenildo (os dados, vazados, mostravam depósitos suspeitos) e se publica o assunto em todo canto, ele precisa dizer que o dinheiro veio de um cara que era seu verdadeiro pai. Isso afetou a honra da família dele. Aconteceu alguma coisa com quem fez isso? Ainda assim sou absolutamente a favor da biografia não autorizada. A questão da honra é que tem que ficar por conta do senso de responsabilidade de quem escreve.

Muitos dos novos livros infantojuvenis trazem referências de fora, como vampiros e fadas. O elemento brasileiro está se perdendo?

O estrangeiro e o nacional sempre conviveram muito. Ao mesmo tempo, nos novos autores surgiram coisas novas, mais cosmopolitas. Na Inglaterra, já aparecem histórias de vampiro no meio da obra da Jane Austen. Essa coisa de um gênero revisitar um clássico é um momento da pós-modernidade. Mas não acho que tire o lugar dos outros. Só soma.


Hoje fala-se muito em narrativas multimídia. Já pensou em fazer isso?

Não. Inclusive quando me pediram eu disse que não tenho nenhuma vontade. Não vou fazer nunca. O que me atrai em literatura é a palavra. Não é nem o assunto ou a idade do leitor, mas o jogo com a linguagem.

Alguns escritores veem nesses novos livros uma degradação da cultura literária. A senhora concorda?

Não acho que seja cultura literária, então não é degradação. Nem todo livro é literatura: do catálogo telefônico à bula de remédio, passando por alguns best-sellers (risos).

Em outubro, Paulo Coelho cancelou sua ida a Frankfurt. O que achou da atitude do escritor e da ausência dos autores que ele defendia?

Não fui eu que escolhi a delegação, eu não tenho nada a ver com isso, me poupa. Se eu tivesse escolhido podiam me perguntar. Eu vivo indo a festas nas quais eu gostaria que outras convidadas. Quem convida é o dono da casa. Não acho que é motivo para boicotar o evento. Você não vai conseguir que eu me pronuncie sobre lista, porque eu não sou autora de lista. Não sou crítica de lista, leitora de lista.

O que a senhora achou das acusações de que a lista era racista?

Vou dizer o que disse para um jornalista alemão. Eu disse: "Olha bem para mim e me diz quanto você acha que eu sou negra, índia ou branca". Ele me disse que nós somos misturados. Eu respondi: "Era isso que eu queria mostrar. Agora, eu gostaria de fazer uma pergunta: por que vocês têm essa obsessão com raça pura? Por que que tinha que ter o negro puro ou o branco puro?". Eles têm essa fixação. Eles acreditam em raça pura há muito tempo. Passaram pelo que passaram e continuam acreditando. Nós sabemos perfeitamente que ela não existe.

Gostou do discurso de Luiz Rufatto?

Gostei. Acho que ele pegou um ângulo dele. Que é o que ele faz sempre. Esse discurso eu já vi parecido. Ele já tinha dito parte do discurso aqui na Bienal, na mesa comigo e o Mia Couto. Ele foi convidado para falar isso, porque é o que ele fala. E acho que algumas pessoas ficaram agressivas demais com ele. É bom fazer colocações políticas sempre.

Que balanço a senhora faz dos últimos dois anos à frente da ABL?

Nossa parceria com a Flupp nos deixou entretecidos. Oferecemos cursos para técnicos de bibliotecas, que vão atuar áreas de UPPs e no interior. Também temos o "Academia vai à academia", com imortais que vão à academia da policia militar falar aos cadetes. Também temos os projetos no exterior, cujo objetivo é tornar a literatura brasileira mais conhecida, em cooperação com várias universidades estrangeiras.

A senhora falava em levar a ABL ao morro, refletindo a euforia com a Polícia Pacificadora. Desde junho, a polícia passou a ser questionada. O que a senhora pensa disso?

Que esta polícia sempre teve um lado bom e outro ruim, nós sempre soubemos. E acho que nós tentamos estar juntos da banda boa. O fato de a banda podre se sentir acuada, e ficar mais agressiva por perder terreno, não significa que vamos abandonar os projetos. Por quê? Você achava que a gente devia cruzar os braços, sentar na porta da casa do Sérgio Cabral e dizer "Fora, Sergio Cabral, eu não brinco mais"? Vamos apoiar projetos bons, e não tomar partido em divergências partidárias.

Recentemente, Raphael Draccon disse que Rubem Fonseca não seria publicado hoje, por não se empenhar na divulgação de seus livros. Os autores estão virando uma mercadoria para as editoras?

É uma deturpação absoluta dos nosso tempos, mas uma realidade. Tanto que, quando um jornalista vem entrevistar um escritor, ele pergunta sobre tudo, menos sobre o livro. Não se publica mais resenha. Saiu um romance meu na Espanha e publicaram resenha de uma página. No Brasil, você tem entrevista de uma página.

Esta notícia foi publicada em 04/11/13 no site http://diariodonordeste.globo.com. Todas as informações são de responsabilidade do autor.
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