Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

13/06/2013

125 anos de Fernando Pessoa. Um dia fingindor com o poeta das 1001 caras

Por Luís de Freitas Branco

Brindamos com absinto ao aniversário do escritor, que hoje se celebra, e imaginamos um roteiro na pele dos seus principais heterónimos

Um século depois, o tabaco ainda é o mesmo, um saquinho da Casa Havaneza no Chiado, directamente de Cuba. "Deves criar um desejo de beber e de fumar e então fumar e beber moderadamente", reflecte o poeta. Nas suas palavras "o movimento antialcoólico é um dos maiores inimigos", ou seja, na esplanada da Brasileira urge beber um copo do muito apreciado absinto. Na mesa está um reflexo igual, de perna cruzada e chapéu de bronze. Assim começa um roteiro endiabrado de Fernando Pessoa por Lisboa, com tempo para heterónimos, merendas e versos livres.

O dia é 13 de Junho de 2013, o aniversário 125 do poeta lisboeta, já defunto deste 1935, mas agora renascido para uma cidade do século XXI. Os devaneios desta viagem são improvisados, assim como grande parte da obra poética pessoana. A esplanada de eleição no Largo de São Carlos é mesmo por baixo do quarto esquerdo, onde nasceu o filho de Joaquim de Seabra Pessoa e Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa. "Com que ânsia tão raiva/ Quero aquele outrora!/ E eu era feliz? Não sei:/ Fui-o outrora agora". Ainda na nostalgia feliz de infância, uma passagem pela próxima Igreja dos Mártires é fundamental, onde o Santo António serviu de inspiração para baptizar Fernando António Nogueira Pessoa.

"A fome só se satisfaz com a comida e a fome de imortalidade da alma com a própria imortalidade". Para este poeta a imortalidade já está garantida, falta então embuchar qualquer coisa. A mesa do costume está no Restaurante Irmãos Unidos, mas como está fechado desde 1970, fiquemo-nos por uma gravata preta da Camisaria Moderna, a ocupar o espaço do antigo restaurante. Hoje, a indignação de Pessoa seria imediata, além de não encontrar os compinchas de almoço Mário de Sá-Carneiro e António Ferro, ainda está em falta o seu retrato de Almada Negreiros.

"De sonhar ninguém se cansa" dizia no "Livro do Desassossego", porque não espreitar o Café Martinho no Terreiro do Paço? Aqui ainda estão as tertúlias, mesmo sem Orpheu podemos pegar na primeira "Granta" portuguesa. Com a barriga feliz, é obrigatória uma passagem na Real Associação de Lisboa (Praça Luís de Camões, 46), para descobrir os avanços e recuos da nossa monarquia, ou porque não, conversar sobre o querido Sidónio Pais.

Ao entardecer, as obrigações na correspondência comercial não devem ser ignoradas - passados 106 anos a fortuna herdada da avó Dionísia está a ficar magrinha. Na Rua da Prata, do Ouro, ou Augusta, estão as memórias de horas a bater na máquina de escrever, ou como descreve, "quase a transformar-se numa espécie de mecanismo de arranque associado a um motor". Na Rua dos Fanqueiros este trabalho de desassossego resultou em livro, e ainda em fotografia paparazzi, apanhado ao balcão de Abel Pereira da Fonseca a beber um copo de vinho.

Chega de aventuras, o melhor é voltar a casa para um banho descansado. O eléctrico 28 tem paragem em frente da Rua Coelho da Rocha em Campo de Ourique. Na Casa Fernando Pessoa, além da estranha afluência, o poeta não vai encontrar a casa de banho, mas sim um escândalo nacional: As suas cartas de confidencia a Ofélia Queiroz a ser editadas em livro! Pior, um tal de Jorge Palma vai cantar às 21h30. O remédio santo está nos versos, encostado a uma escrivaninha lembra-se de "um dia triunfal da minha vida que jamais foi repetido", quando reprimiu o pensamento e nasceu Alberto Caeiro.

Alberto Caeiro Nas palavras do mestre ingénuo : "Minha alma é como um pastor,/ Conhece o vento e o sol/ E anda pela mão das Estações/ A seguir e a olhar". A Casa Fernando Pessoa está excessivamente populada, os poetas querem-se solitários e com poesia tão natural como o "levantar do vento". O Jardim da Estrela está aqui perto, uma lufada de ar fresco que ajuda a não pensar. Um ponto importando é saber evitar a Basílica da Estrela e qualquer símbolo religioso, ou como diz o mestre: "Para que lhe chamo Deus?/ Chamo-lhe flores e árvores e montes de sol e luar".

A figura frágil e os olhos azuis são sensíveis ao sol. No Jardim Botânico pode-se continuar mais descansado a demanda de "imaginar ser cordeirinho". A Rua do Salitre, aqui tão perto, lembra a verdadeira divindade do olhar, o número 107, onde morava Cesário Verde. Alimentado de verduras, existem vontades mais terrenas que não podem ser ignoradas, mas este estômago febril de tuberculose só aceita produtos da terra. No restaurante O Arado (Rua Filipe Mata 140), o Ribatejo de Caeiro é celebrado com Sopa de Pedra, Migas de Pão de Milho e Favas com Chouriço. Melhor pouso é impossível, com o gigante Monsanto a abrir-se a Lisboa. Segue-se a actividade primordial: "E me deito ao comprido na relva/ E fecho os olhos quentes,/ Sinto o meu corpo deitado na realidade,/ Sei a verdade e sou feliz".

Na Lisboa de hoje, a procura pela "eterna novidade do Mundo" não é fácil, para poupar grandes caminhadas, o poeta improvisado deve passar na Ervanária Rosil (Rua da Madalena 210) e fazer take away do "olhar nítido como girassol". O professor Cesário Verde já tinha avisado que esta cidade era febril, a única solução está em voltar ao Ribatejo. Com uma curta passagem no Museu Nacional de Etnologia (Avenida Ilha da Madeira) e no Museu Nacional do Traje (Largo Júlio Castilho), o regresso está desenhado de madrugada nas linhas de comboio de Santa Apolónia. Enquanto Caeiro inala umas ervas e está descansado na classe turística, um homem curvado não deixa o comboio arrancar, com o ouvido pregado nas linhas.

Álvaro Campos "Ó tramways, funiculares, metropolitanos,/ Roçai-vos por mim até o espasmo!/ Hilla! hilla! hilla-hô!". Depois de mais um "Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô", o policia faz o favor de expulsar este louco que se despede com "Ah não ser eu toda a gente e toda a parte!". O Metro de Lisboa fica para descobrir outro dia, depois de exorcizar os diabos de Marinetti, volta à sua "náusea de vida". A noite anterior no LUX não satisfez, que acabou com ofensas aos clientes, sejam eles " lamparinos das partículas alheias" ou "arranjistas da intelectualidade inesperada".

Os centro de emprego estão todos muito longe, o melhor é seguir o Tejo, onde os barcos chegam e se despedem. "Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão". O Porto de Lisboa é a inspiração, para tempos melhores quando era marinheiro e havia dias de "divino êxtase revelador". No Museu da Electricidade (Avenida Brasília) recorda quando "fingi que estudei engenharia" e no Museu do Oriente (Avenida de Brasília, Doca de Alcântara) volta a um hábito purificador: "Caio no ópio por força. Lá querer/ Que eu leve a limpo uma vida destas/ Não se pode exigir".

No Cais do Sodré procura a embriaguez marinheira, com tempo para montar uma pequena manifestação contra o governo ("todos os chefes do estado, incompetentes do léu") e troika ("Homens-altos do luliput-Europa"). Cansado de espreitar a Lisboa "com suas casas/ De várias cores", deixa-se ficar pelo Ménage, bar strip com cerveja sem fundo. "Não posso estar em parte alguma" reflecte em mais uma dose de pessimismo, procurando agora o petisde de preferência: uma dobrada. O resultado foi a mesma nega constante: "Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,/ Serviram-me o amor como dobrada fria./ Disse delicadamente ao missionário da cozinha/ Que a preferia quente,/ Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria".

Pontapeado mais uma vez para fora de outro espaço comercial, só resta voltar ao Tejo, gritando um último apelo a plenos pulmões: "Proclamo isto bem alto e bem no auge, na barra do tejo, de costas para a Europa, braços erguidos, fitando o Atlântico e saudando abstractamente o infinito". Do outro lado do Atlântico, um médico ouve o apelo, ignorando este grito pouco racional e voltando para a sua casa em Botafogo, Rio de Janeiro.

Ricardo Reis O passeio é o mesmo de sempre, pelo Paço Imperial (Praça XV de Novembro), nos tempos gloriosos quando o rei clemente D. João VI fazia aqui casa. As caipirinhas e água de coco estão expostas ao longo da costa, mas o eterno comedido bebe apenas uma, evitando excessos. Uma bonita tarde em Copacabana acaba em mais uma revelação racional e fatalista: "Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos/ Da irrespirável treva que nos pese".

Apesar da morte "gozemos o momento,/ Solenes na alegria levemente" e porque não um percurso pela lapa carioca? No Teatro de Anónimo (Rua dos Arcos, 24) o actor Alexandre Borges celebra o aniversário do ortónimo e para o festejo vem armado com poemas do próprio Ricardo Reis (amanhã das 19h às 21h). Ao fim do dia, o homem mais racional de todas estas andanças esquizofrénicas, pede silêncio para a atenta plateia: "Tenho mais almas que uma/ Há mais eus do que eu mesmo/ Existo todavia/ Indiferente a todos/ Faço-os calar: eu falo."


Esta notícia foi publicada dia 13/06/13 no site http://www.ionline.pt/. Todas as informações contidas nela são de responsabilidade do autor.
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