Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

05/04/2012

Cada um com seu Millôr

Cada brasileiro letrado tem seu Millôr. Na semana de sua morte, muitos colunistas e colegas repetiram verdades mais ou menos óbvias sobre ele. Destaco duas: sua originalidade (genialidade?) e a ausência de baixaria em seus textos. Classe é classe (clichê, mas verdade insuperável). Pode-se reler tudo o que escreveu procurando com lupa e não se encontrará apelação para a grossura em busca de efeito de "humor". Sua graça não escolheu alvos, mas seu método nunca incluiu a baixaria.
Cada um tem seu Millôr, eu disse. O meu começou com Liberdade, Liberdade, dele e de Flávio Rangel, que vi em Curitiba, com Paulo Autran e companhia (me lembro de Tereza Raquel, mas não tenho certeza da participação de Oduvaldo Vianna Filho; Nara Leão certamente não estava - teria sido sorte demais).
(Depois me lembrei: já tinha lido três páginas sobre Millôr no manual em que "estudei" literatura no colegial, Lições de literatura brasileira, de Ébion de Lima - São Paulo: Livraria Editora Salesiana, 1963). Lá estão exemplos de sua arte: um epitáfio (Aqui jaz minha mulher / que partiu para o Além / Agora descansa em paz / e eu também), trocadilhos ("Diabo sofre de diabetes?", "A lavadeira põe o ferro em cima da roupa e o tempo passa"), frases de dimensão poética, segundo o autor ("Pegamos o telefone que o menino fez com duas caixinhas de papelão e pedimos ligação para a infância"). Faz tempo! Mas ele já tinha 40 anos!
Depois disso, sempre que pude, li Millôr. Ele sempre foi parte de minha ração. Semanal, no Pasquim e nas revistas em que escreveu alternadamente (mantive assinaturas por causa de sua página), ou nas coletâneas, das quais tenho diversas, e às quais sempre volto, até em busca de frases perfeitas para ilustrar minhas aulas - alunos merecem inteligência.
Todos dizem que foi um desenhista incrível. Pode ser, acredito, mas minha capacidade de avaliar (a de gostar é outra coisa) o ramo é baixa. Então, fico com os textos. Todos, mas, especialmente, suas frases cintilantes. Sempre bem armadas, de ritmo invejável, cortantes, na mosca. Talvez deva a ele, em boa medida, o gosto especial pelos textos brevíssimos.
Frequentemente, ele explorava pequenas diferenças sonoras (às vezes, gráficas), outras vezes, mudava a ordem das palavras, que vinham a ter, claro, outro sentido. Millôr sabia fazer de tudo. "A pior dor é a dor de olvido", "De noite, todos os pardos são gatos", "Cada número é exemplar. Cada exemplar é um número" (slogan da Pif-Paf), "Uma linda mulher de quarenta anos: cara e coroa", "Alguns livros são do tipo que, quando você os larga, não consegue pegar mais". Haja etc!
O diálogo das Cobras, de L. F. Verissimo, nesta semana, aqui em Terra Magazine, veio a calhar: - "Flecha: na vida, é preferível saber um pouco sobre tudo ou tudo sobre uma coisa só?" - O verdadeiro sábio sabe uma coisa só... Como consultar uma enciclopédia".
Certamente poucos souberam tirar da Britânica o que Millôr extraiu dela. É outra lição de trabalho.
É claro que o contato com a obra é o que mais interessa. Mas confesso minha frustração pelo fato de ele não ter ido a Passo Fundo, numa das conhecidas Jornadas. É que a mesa redonda sobre humor programada era, para mim, especialíssima: Luis Fernando Verissimo, Cora Ronai, Millôr Fernandes e este escriba. Millôr e Cora não foram. Se tivessem ido, pelo menos o auditório teria dividido mais justamente as perguntas, depois de nossas falas...
No caso de mortes como a de Millôr, o vazio é menor, porque os livros continuam. E parecem atuais. Mesmo que falem de coisas desaparecidas.
Na semana quem vem, começo a escrever em um blog. Decisão da casa. Não seria minha escolha, mas vou fazer a tentativa. Pode ser que não dê certo. Se for o caso, abandono o barco. Pretendo manter a periodicidade. Não faz parte de meu projeto postar comentários todos os dias ou todas as horas. Só faria isso se este fosse meu trabalho.
Vou deixar aberta a possibilidade de leitores postarem comentários. Mas, se não forem pertinentes, isto é, se forem sobre tudo, exceto sobre o tema da coluna, talvez lhes feche a porta. Afinal qualquer um pode fazer seu próprio blog.
Sei que, mudando o "midium", é possível que também mudem os leitores. Agradeço aos que acompanharam a coluna.
Sírio Possenti é professor titular do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso, Língua na Mídia e Questões de linguagem.
Notícia retirada do Terra Magazine. Todas as alterações posteriores são de responsabilidade do autor.
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