Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

26/09/2011

Candido: A esquerda às vezes se odeia mais do que a direita

Claudio Leal
Na abertura da série de conferências sobre os 75 anos do romance "Angústia", de Graciliano Ramos (1892-1953), no Prédio das Ciências Sociais e Filosofia da USP, o crítico literário Antonio Candido, 93 anos, apresentou uma aula sobre sua trajetória de leitor e estudioso do escritor alagoano.
Organizadora da reedição de "Angústia" (Ed. Record), a professora de literatura Elizabeth Ramos (neta do autor) também foi uma das palestrantes, ao lado de Erwin Torralbo Gimenez. Antonio Candido optou por "um depoimento pessoal e muito singelo". Numa sala repleta de alunos de Letras, ele situou o período histórico em que o romancista escreveu suas principais obras. "Graciliano Ramos atuou num dos momentos mais ricos da literatura brasileira", afirmou Candido, referindo-se às décadas de 1920 a 1960. "Eu me pergunto se não foi 'o' momento mais rico da nossa literatura".
O crítico ponderou que os estudos acadêmicos têm enfatizado o papel do modernismo na renovação literária brasileira, mas, frequentemente, se esquecem da importância do "movimento revolucionário de 1930", dentro do ciclo dos tenentes. "O modernismo passou muito despercebido. Teve importância histórica, mas não teve repercussão. Foi um movimento de elite, de uma elite intelectual. Os livros dos modernistas não eram conhecidos", testemunhou. Com a revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder, "houve uma transformação geral que só quem viveu aquele tempo pôde sentir".
Candido relatou o impacto provocado pela chegada dos romances de Jorge Amado, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Graciliano Ramos em Poços de Caldas (MG), onde passou parte da juventude. Um vendedor, de alcunha "Batata", abria os pacotes com as novidades literárias. "A impressão é que, pessoalmente, esses livros foram importantes para a descoberta do Brasil". "Se eu quero conhecer a Bahia, hoje, tomo um avião e chego lá duas horas depois. Na época, a viagem demorava quatro dias (...) A função do romance de 30 foi me fazer conhecer o Nordeste, a Amazônia, o Rio Grande do Sul e o próprio Estado de Minas Gerais. Aliás, a literatura brasileira sempre teve a função de descoberta", analisou Candido. "Esse romance (de 30) me aproximou do pobre e do desvalido".
O rádio e a música popular urbana são as outras fontes de descoberta do País, destacou o crítico. "Hoje não se pode conceber a função do rádio, principalmente o de ondas curtas. O rádio de ondas longas fazia mais barulho que som (imita os chiados). Com as ondas curtas, as pessoas ligavam o rádio em Belo Horizonte e Porto Alegre, e a mensagem era a mesma".
Antonio Candido se recorda "perfeitamente" do dia em que viu pela primeira vez a capa de "Caetés", na Livraria Tupi, em Poços de Caldas. Por ser uma estância hidromineral, a cidade mineira atraía forasteiros, que demandavam um estoque de leituras. À época, Candido também frequentava a livraria "Vida Social". "Houve o movimento das capas novas, feitas por Santa Rosa.... Capas cubistas, surrealistas... Através das capas, os (artistas) modernistas de 20 tiveram penetração em 30".
Com as novas fornadas dos romancistas, houve um processo de "depuração". O autor de "Formação da Literatura Brasileira" explicou o uso dessa imagem: "No fim de 15 anos, ninguém sabe quem é Lauro Palhano. Mas já sabe distinguir quem é Jorge Amado, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz". De cedo, ele concluiu: "Cheguei à convicção de que Graciliano era o maior escritor (...) Como leitor de romance, o meu (preferido) é 'São Bernardo'. Eu li 'São Bernardo', no mínimo, umas 20 vezes. E leio até hoje".
"Depois eu li 'Angústia'. Aquele escritor seco estava gorduroso", ironizou o crítico, admitindo que não havia gostado do romance. Entretanto, a obra encontrou excelente recepção. "Saiu agora um livro que é um verdadeiro Dostoiévski!", disse-lhe um primo. O professor elogiou a adaptação cinematográfica do livro: "Raras vezes o cinema brasileiro fez um filme tão bom quanto 'São Bernardo' (dirigido por Leon Hirszman). Othon Bastos nasceu para fazer aquele papel".
"Esquerda às vezes se odeia mais do que a direita"
"Comecei a escrever tarde para os padrões brasileiros. Eu tinha 23 anos quando escrevi meu primeiro artigo. Nessa idade, todo mundo já tinha lançado dois romances, um livro de poesias...", Candido brincou. No trabalho de "crítico titular" do "Diário de São Paulo" - "uma profissão de alto risco"-, recebeu uma obra de Graciliano Ramos com dedicatória. "Eu fiquei deslumbrado. Minha sensação foi de alto deslumbramento". No segundo semestre de 1945, resolveu fazer uma série de cinco rodapés sobre os livros de Graciliano. "Ele já era considerado como autor supremo".
Após a publicação dos artigos, veio uma carta do romancista, em resposta às suas ponderações no jornal. Mas só o conheceria na casa de sua prima, a crítica Lúcia Miguel Pereira, casada com o historiador Otávio Tarquínio de Sousa. Graciliano por Candido: "Um homem de pouca fala, muito educado e distinto. Um homem que se impõe". No jantar, o alagoano descreveu o que seria "Memórias do Cárcere". "Otávio Tarquínio que pediu para ele falar, senão ele não falava".
Na reedição de "Caetés", recebeu um exemplar com uma dedicatória que recendia a gratidão: "Antonio Candido, a culpa é minha, mas também é sua. Se não existisse aquele seu rodapé, talvez não se reeditasse este livro". Mais tarde, apesar das divergências políticas, Candido foi indicado por Graciliano para fazer a introdução a suas obras - "a coisa mais emocionante de minha vida". "Ele era um militante muito ativo e convicto do Partido Comunista. E eu era um militante do Partido Socialista Brasileiro. Os dois (partidos) não se gostavam. A esquerda às vezes se odeia mais do que a direita".
"Nós não éramos contra o comunismo. Estávamos contra o stalinismo", esclareceu. "E ele escolheu um nome do Partido Socialista". Antonio Candido reuniu os estudos sobre o autor de "Vidas Secas" no volume "Ficção e confissão".
"Acho uma sorte extraordinária da literatura brasileira contar com grandes escritores de polos opostos (...) O Brasil tem sempre um jogo dialético muito curioso", observou, comparando José de Alencar e Joaquim Manuel de Macedo, Machado de Assis e Euclides da Cunha, Guimarães Rosa e Graciliano Ramos ("o gordo e o magro").
No final da aula de professor aposentado, Antonio Candido voltou a repetir que está "desligado da vida literária há 30 anos". "Tenho até vergonha quando dizem: 'Ah, tal romance!'. Eu finjo que sei (levanta as sobrancelhas), mas não li...". Numa rara concessão, recomendou à plateia duas de suas leituras recentes: "Uma história do romance de 30", de Luis Bueno, e "Graciliano Ramos em seu tempo - O meio literário na era Vargas", de Adriana Coelho. Estes livros contribuíram para a revisita ao Velho Graça.
Notícia retirada Terra Magazine. Todas as alterações posteriores são de responsabilidade do autor.
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