Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

05/08/2011

Indícios

Sírio Possenti
O conhecimento da realidade decorre basicamente de dois procedimentos: um funciona exemplarmente nas ciências naturais, cujo melhor exemplo é a física - na verdade, a física newtoniana (é o modelo hipotético dedutivo). O outro funciona em certos campos de saber como a medicina, a psicanálise (sintomas) e a arqueologia (indícios). Um médico pode diagnosticar doenças com base em uma informação do paciente; um psicanalista pode formular hipóteses levando a sério um ato falho ou um sonho; um arqueólogo pode defender a tese de que a vida humana começou num certo continente e em certa época, analisando um pedaço de crânio ao qual um leigo não daria a menor importância.
Carlo Ginsburg escreveu um excelente ensaio sobre este procedimento, que chamou de paradigma indiciário ("Sinais: raízes de um paradigma indiciário", em Mitos, emblemas, sinais. S. Paulo: Companhia das Letras; o texto também foi editado, juntamente com outros ensaios sobre o mesmo procedimento, em Eco e Sebeok, O signo dos três. S. Paulo: Perspectiva). O método indiciário é também o dos detetives, que descobrem criminosos a partir de pistas mínimas - um cabelo, a marca de uma sola de sapato etc.
Dito isso, vejamos uns casos.
Quase ao final do artigo de Delfim Neto publicado na Folha de S. Paulo no dia 27/07/2011 (p. 2), encontra-se: "A regra de ouro de sua ação deve ser: forte estímulo à competição doméstica entre as empresas, com adequadas medidas microeconômicas que permitam-nas disputar com eficiência nosso crescente mercado interno". O leitor pode passar em branco ou pode tropeçar na forma pronominal de "permitam-nas". Se tropeçar, pode imaginar várias alternativas (e ter diversas atitudes): Delfim escreveu "permitam-lhes" e um revisor corrigiu a forma "lhes" etc. Mas, provavelmente, a melhor hipótese é que as formas "o,a,os,as" (e suas variantes "lo, no" etc.) estejam em vias de desaparecer. Argumentos? Praticamente esses pronomes não ocorrem na fala de ninguém, sendo substituídos diretamente por "ele / ela" (encontrei ele / ela na rua; mandei ele / ela sair) ou por "lhe" (venho lhe convidar para a festa). Um forte indício de que a forma pronominal "direta" está caindo é que foi usada quando não seria o caso (as gramáticas e manuais mandariam escrever "que lhes permitam"). A razão? Receio de errar, insegurança. Outro dado relevante é que isso aconteceu na pena de Delfim Neto, um economista culto e idoso (a idade dos falantes é um fator importante para hipóteses sobre mudança lingüística).
Para confirmar: em "O disfarce e a euforia", conto de Axilas e outras histórias, de Rubem Fonseca, pode-se ler: "Fazia ele usufruir um prazer que jamais sentira" (as aulas mandam dizer "fazia-o sentir"). É claro que não há nenhum problema nesta última construção. Mas qual é mesmo o problema que com a outra, a de Rubem e de quase todos? Por que não admitir que é uma forma culta, "correta"?
A tese pode ser a seguinte: se articulistas (acadêmicos) como Delfim Neto manifestam insegurança no emprego destes pronomes, estamos diante de um forte indício de que seu emprego não faz mais parte da competência (usual, normal, típica) dos falantes de português (do Brasil). Falando, Delfim provavelmente diria "medidas microeconômicas que permitam a elas disputar" ou "que permitam que elas disputem" ou "que lhes permitam disputar".
O capítulo 3 de José, outro recentíssimo livro de Rubem Fonseca (podem ser memórias), começa assim: "José preferia ler em vez de jogar bola de gude". Na escola, estuda-se, naquela lista de verbos cujas regências "corretas" têm que ser aprendidas (e quase nunca o são, porque são arcaicas), que a regência do verbo "preferir" é "x a y": "preferia ler a jogar bola de gude". Muitos, a maioria absoluta, como se sabe, diz "preferir do que" ou até "preferir mais do que". Outros, como Rubem, no caso, "preferir em vez de".
Um leitor tradicional (muito tradicional!) dirá que nem os melhores escritores sabem escrever corretamente (que decadência!). Um leitor mais inteligente preferirá a tese de que a regência de "preferir" já mudou (como outras regras). Um fortíssimo indício de que mudou é aparecer uma "diferente" no texto de Rubem Fonseca, um escritor que não faz concessões à sintaxe popular (ou faz cada vez menos, ou não faz há mais de 20 anos).
Às vezes, a interpretação dos indícios é relativamente fácil, como nos casos acima. Às vezes, exige uma especialização maior. Num texto célebre sobre erros de escolares, que já citei aqui muitas vezes, Mattoso Câmara analisa diversas grafias da palavra "silvou" (a cobra silvou no ar), que ocorria num ditado. Além da grafia correta, ocorreu "ciovol" (um erro previsível, (s / c) e dois outros decorrentes de tentativas de grafar o som final das sílabas, que são duas semivogais, na pronúncia desses alunos (siuvou).
Em tese, as grafias podem ser com "o", com "u" ou com "l" (mal, mau, Mao podem ter a mesma pronúncia). Mas o mais "estranho" é "silivou". A hipótese de Mattoso é que o aluno acrescentou um "i" depois do "l" para preservá-lo! Como o "l" em final de sílaba soa como o "u", o aluno o colocou no começo da sílaba, para que continuasse sendo um "l".
Um analista comum diria que se trata apenas de um erro. Um analista sofisticado, como Mattoso, vê no erro um fenômeno complexo, que reúne fatos de variação e tentativas do aluno de encontrar uma solução que lhe pareça adequada para a escrita. Não é, mas o aluno revela uma interessantíssima capacidade de formular hipóteses.
Talvez estejamos dispostos a aceitar (ou nem percebamos mais que estão "erradas") determinadas construções nos textos dos escritores ou das pessoas "autorizadas" em geral, porque são cultas etc. Mas estas formas ocorrem também nas "redações" escolares. "Erros" de escolares e de escritores têm frequentemente a mesma origem (claro que "silivou" é de outra espécie). Esses erros ainda, e só, "tiram pontos"? Se sim, não sabemos interpretar adequadamente os indícios. Para corrigir, seria necessário saber explicar as razões que levaram ao erro.
Esta notícia foi publicada em 03/08/2011 no site Terra Magazine. Todas as informações nela contida são de responsabilidade do autor.
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