Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

28/07/2011

Uma nota sobre gramáticas

Sírio Possenti
Muita gente pensa (foi levada a pensar) que a linguística se reduz à sociolinguística, que, no entanto, é apenas um de seus "ramos", a especialidade que se dedica a uma das características das línguas: não serem uniformes. Considerar que ela é toda a linguística é como achar que a física se resume aos estudos de eletricidade.
Sumariamente, a linguística pretende substituir as gramáticas (mais ou menos como a astronomia moderna substituiu a de Ptolomeu), e não ser seu "ramo" para cursos de letras ou para a universidade - como defenderam alguns desavisados (na verdade, leigos que aceitaram opinar, apesar disso). Defender essa tese em relação às línguas seria como aceitar que só se deve ensinar álgebra nos cursos superiores, que a escola deve ensinar apenas a "fazer contas", para o cidadão não ser enganado.
Tenho escrito com frequência que, de fato, os defensores das gramáticas não as conhecem. O nosso "intelectual" típico apenas conhece as listas de erros que não deve cometer, do tipo "os dez mais". Ele se acha um gênio porque sabe empregar um "cujo", pensa que conhece a regência de "namorar" e acredita que "sentar na mesa" significa 'sentar em cima da mesa'. Como há os que acreditam em duendes...
Mas a questão é a gramática. No recente debate sobre o "livro do MEC", uma das teses mais bobas que circularam foi a de que não se deve ensinar linguística na escola. Que a escola é lugar para ensinar gramática. Mas o que é uma gramática, senão linguística pela metade?
Vamos a dois exemplos. Perini, há tempo (Para uma nova gramática do português, São Paulo: Ática, 1985), defendia que uma das condições para o ensino gramatical ser mais bem sucedido é que as gramáticas sejam coerentes. Por exemplo: dada uma definição, deveria ser seguida pelo menos na gramática em questão. Ou, no mínimo, no capítulo em questão!
Mostrou que esta exigência mínima não era seguida por um dos maiores nomes da área, Celso Cunha. Em sua Gramática da língua portuguesa (MEC-FENAME, 1975), encontra-se a seguinte definição: "Sujeito é o termo sobre o qual se faz uma declaração" (p. 137). Mas, logo adiante (como diz Perini), falando do sujeito indeterminado, afirma: "Às vezes, o verbo não se refere a uma pessoa determinada, ou por se desconhecer quem executa a ação (grifo meu), ou por não haver interesse no seu conhecimento".
Como até mesmo "eles" podem verificar, o sujeito não é mais "o termo sobre o qual se faz uma declaração", mas "quem executa a ação". E há mais: quando trata de orações sem sujeito, o autor retoma esta última definição, quando previne que "não deve ser confundido o sujeito indeterminado, que existe, mas não se pode ou não se deseja identificar, com a inexistência do sujeito". Neste caso, acrescenta, "interessa-nos o processo verbal em si, pois não o atribuímos a nenhum ser" (grifo meu). Ora, atribuir o processo verbal a um ser não tem nada a ver com "fazer uma declaração sobre um termo". E tem tudo a ver com "quem pratica a ação".
Nem se mencione que, se o sujeito fosse o termo sobre o qual se faz uma declaração, as ordens e as perguntas não teriam sujeito! (Não digam, por favor, que se trata de tipos especiais de declaração!).
Mas Perini é um "bom companheiro": insiste em dizer que o problema não é dos gramáticos, e sim das gramáticas. (Imaginem um livro de biologia que defina célula de um jeito numa página e de outro na seguinte. Todos acusariam o MEC e os autores do livro de ensinar biologia errado).
Falta de rigor semelhante pode ser vista em Bechara (Moderna gramática portuguesa, Rio: Editora Lucerna, 1999). Antes de tudo, registro que a obra tem muitas virtudes. Até por isso, talvez, seja quase desconhecida.
No capítulo "Fonética e fonologia" (por que tratar destes assuntos em uma gramática, se não se deve estudar linguística na escola?), Bechara avisa que "não se há de confundir fonema com letra" (certo!). E segue, cometendo logo um equívoco: "fonema é uma realidade acústica, que nosso ouvido registra". Por que equívoco? Porque o que nosso ouvido registra é um som, um "fone", e não um fonema - como o próprio Bechara dirá adiante.
A falta de coerência (ou de clareza) continua: "o importante para os falantes é o fonema, e não a série de movimentos articulatórios que o determinam. Assim sendo, enquanto a análise fonética se preocupa tão-somente com a articulação (sic), a fonêmica atenta apenas para o fonema, que, reunindo um feixe de traços que o distingue de outro fonema, permite a comunicação linguística". (Fonema é som ou feixe de traços?)
Ocorre que os foneticistas podem se ocupar dos fenômenos envolvidos na articulação, mas também dos fenômenos acústicos que decorrem desses movimentos articulatórios (aprende-se isso na primeira aula de fonética!). Assim, não é verdade que a fonética se preocupa tão-somente com a articulação. Aliás, quase todas as "aplicações" da fonética são de fundamento acústico, desde "as máquinas que falam" até a fonética forense. Um reconhecimento de voz não se faz analisando os movimentos articulatórios do suspeito, mas sim a qualidade de sua voz, seus traços acústicos.
Continua Bechara: "a fonética pode reconhecer (...) diversas realizações para o fonema t, da série ta-te-ti-to-tu (série a que faltam té e tó, já que Bechara reconhece que o português tem sete vogais (fonemas vocálicos), representadas por cinco letras, acrescento eu); a fonêmica não leva em conta as variações (que se chamam alofones), porque delas não tomam conhecimento os falantes de língua portuguesa".
Há diversas realizações do fonema t diante de vogais diversas, como Bechara reconhece. Apesar delas, trata-se sempre do mesmo fonema t. Sendo assim, o fonema não pode ser a realidade acústica que nosso ouvido registra. Isso fica bem mais claro nos casos em que a diversa realização do t é bem audível: o melhor caso é comparar, por exemplo, os t de "teto" e os de "titia", nas regiões em que se diz |tchitchia|.
Bechara está corretíssimo quando afirma que o fonema admite uma gama variada de realizações fonéticas. Mas é por isso mesmo que o fonema não pode ser a "realidade acústica"! Estas são exatamente as diversas realizações concretas do fonema.
Isso tudo é irrelevante na escola? A meu ver, nem tanto. É com base nesse tipo de conhecimento que se podem explicar, entre outros fatos, numerosos erros de grafia. E numerosos casos que caracterizam a fala, eventualmente não percebidos levando em conta apenas a escrita. Sem contar os sotaques, as diversas entonações etc, que distinguem os falantes das diversas regiões do país.
Mas o que eu queria mostrar, basicamente, é que eles parecem ter boas razões para não querer que se ensine linguística na escola.
Por último: por que a mídia nunca critica essas incongruências nas gramáticas? Acho que sei: ninguém as lê, ninguém as conhece!
Esta notícia foi publicada em 28/07/2011 no Terra Magazine. Todas as informações nela contida são de responsabilidade do autor.
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