Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

29/06/2010

O romance segundo José Saramago

Carlos Araújo
Agora que todos já falaram quase tudo sobre José Saramago, agora que do homem sobraram as cinzas e a memória de uma vida dedicada à literatura e que teve o reconhecimento máximo com o Prêmio Nobel de 1998, agora que podemos ter a sensação de que o escritor criou uma maneira mágica de sobreviver nas páginas da sua vasta e diversificada obra, é difícil refletir sobre a importância do autor português sem correr o risco de reprisar o que já falaram, escreveram, pensaram sobre ele.
Que Saramago foi um grande escritor, um dos maiores do seu tempo; que contribuiu para tirar a língua portuguesa da periferia e chamar a atenção de todo o mundo para a literatura de qualidade que é produzida nesse idioma; que provou ser possível contar boas histórias com o uso de técnicas narrativas nada convencionais, marcadas por vírgulas em longas frases e parágrafos, diálogos se confundindo com narrativas e descrições, criando desafios para quem abre os seus livros, e mesmo assim cativar legiões de leitores; que criou mundos muito particulares, sem fazer concessões a gostos e modas de qualquer natureza, como só os autores diferenciados sabem fazer; nada disso se discute. Tudo isso é muito óbvio para quem conhece a obra do autor português e pode fazer paralelos com outros autores e literaturas produzidas em outras línguas, culturas, gerações.
Isto me faz propor um outro olhar: Saramago é a consagração do romance como gênero literário e como comprovação das infinitas possibilidades das técnicas narrativas como forma de contar as histórias que encantam a humanidade. E isto aconteceu em tempos (nas últimas décadas) em que se falou e se profetizou muito sobre o esgotamento e o fim do romance. Os livros de Saramago contradizem as teorias catastrofistas e mostram o quanto o romance continua pulsante e vivo como gênero, forma, mercado.
Poesia, teatro, conto, cinema, música, dança, artes plásticas, todas as manifestações artísticas, cada uma dentro da sua linguagem, têm a capacidade de surpreender e provocar emoções. Mas é o romance, por suas características de liberdade total da narrativa, que pode engolir todos os gêneros sem a preocupação se ser isso ou aquilo. Sem amarras, sem receita, sem padrão, o romance pode ser uma reinvenção do jeito de se contar uma história. E pode nem ao menos contar uma história, não há essa obrigatoriedade, e mesmo assim não deixar de ser um romance. Não é à toa que muitos romances são adaptados para o cinema, o teatro, até viram shows de dança e música. E Saramago, em meio a essas entranhas, foi mestre.
Desde Miguel de Cervantes com o seu “Dom Quixote”, que muitos classificam como o início do romance moderno, o gênero passou por grandes transformações. Dos estilos convencionais de narrativas, o romance atingiu formas radicais graças à genialidade de autores tão importantes para a literatura universal em todos os tempos como os nossos Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas) e Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas). Os estrangeiros, beneficiados pelas línguas de grande projeção no mundo (inglesa, francesa, alemã, espanhola, italiana) ganharam maior projeção se comparados aos dois gênios brasileiros, mas estes não devem nada aos outros em talento e criatividade. Tanto, que Machado antecipou Franz Kafka com a criação de um personagem que escreve suas memórias depois de morto, e Rosa desequilibrou a literatura com o seu mundo de jagunços.
As idéias de esgotamento e fim do romance começaram a ganhar corpo com “Ulisses”, de James Joyce, um antirromance que se propôs a ser tudo, menos romance, e se tornou um marco do gênero. Nos Estados Unidos, William Faulkner tentou destruir o romance como gênero ao criar os antirromances “O Som e a Fúria” e “Enquanto Agonizo” – e, com estas obras, nada mais fez do que fortalecer o romance também como possibilidade de reinvenção estética. Marcel Proust já fizera proeza semelhante com a construção do seu monumental “Em Busca do Tempo Perdido”, constituído de livros escritos com a sofisticação de quem edifica catedrais.
Como esses autores, Saramago também fez história ao escrever num estilo em que elimina o ponto e abusa das vírgulas. Foi o jeito que encontrou de contar uma história dispensando os formatos tradicionais. Por que ser igual a todos, se é possível ser diferente? Com isso, Saramago resolveu conflitos de autores insatisfeitos com as formas de contar bem uma história, por melhores e bem escritas que elas sejam. Como se não bastasse narrar, como se o desafio fosse criar estilos muito próprios. Não é para qualquer um. Somente grandes autores conseguem tais objetivos – entre eles, Machado e Rosa.
Basta pegar um único livros de Saramago, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, para se ter uma idéia do quanto ele ajudou a reinventar o romance e calar a boca dos que dizem que esse gênero está morto. “Levantado do Chão”, “Memorial do Convento”, “Ensaio sobre a Cegueira” e “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” seriam, cada um , suficientes para imortalizar um escritor. E são obras de um único escritor.
Portugal (e o Brasil não fica atrás) é celeiro de grandes romancistas. Eça de Queiroz, o autor de “Os Maias”, foi o grande nome antes de Saramago. Nos últimos anos, outro português, Antonio Lobo Antunes, autor de “Fado Alexandrino”, “persegue” Saramago em fama e importância - e muitos o considerem melhor do que Saramago, mais radical, embora ainda longe da popularidade.
Assim é a vida, assim é a literatura.
Saramago, o homem, morreu. Saramago, o escritor, sobreviverá nos seus romances.
Esta notícia foi publicada em 22/06/2010 no sítio Cruzeiro On Line. Todas as informações nela contida são de responsabilidade do autor.
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