Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

05/04/2010

Uma invenção do Brasil pelo romantismo

Por Dellano Rios
Estudo do crítico e historiador literário Ubiratan Machado esboça cenário sociocultural do Brasil em meados do século XIX. "A vida literária no Brasil durante o romantismo" mostra instalação da escola romântica no País e seu impacto na forma de ler, escrever e comercializar livros
Senso comum: um romântico é aquele sujeito apaixonado, sonhador, dado à poética e devoto do ser amado. O dicionário terminou por abraçar o significado que o uso conferiu à ideia. Tão longe chegou a repercussão do romantismo, não da postura, mas sim da escola literária, que hoje goza de certa onipresença, garantida por uma memória nebulosa que não sabe bem de onde tirou estas imagens.
"A vida literária no Brasil durante o romantismo", do jornalista e historiador da literatura Ubiratan Machado, é um livro que aponta para o passado, que faz relembrar (ou mesmo descobrir) as origens deste romantismo da rua e do dicionário. É também, como todo bom exercício da disciplina histórica, um discurso que fala sobre o tempo presente, não de forma direta, mas deixando entrevê-lo em frestas. Revela pontes hoje quase invisíveis que ligam antigas práticas dos literatos românticos e da sociedade que os acolheu ao modo contemporâneo de se relacionar com a literatura, com os escritores e com os próprios sentimentos.
O livro acaba de ganhar sua segunda edição, ampliada, pela novata Tinta Negra (a primeira saiu há quase 10 anos, pela editora da Uerj). Escrita da paixão e da juventude, o romantismo apaixonou Ubiratan Machado ainda na adolescência. Desde os 13 anos, é um leitor assíduo dos românticos, brasileiros e estrangeiros, e de suas fortunas críticas. "A ideia do livro foi sugerida pelo projeto de Brito Broca (crítico literário, 1906 - 1961) de escrever uma história da vida literária do período. Ele morreu, sem realizá-lo. Na década de 90, tive uma recaída romântica, ao reler alguns autores do período, e logo se impôs a ideia da obra, abrangendo não apenas a vida literária, mas também as suas conexões com a realidade histórica, social e política do País. O trabalho levou cerca de cinco anos, ora exigindo pesquisas demoradas sobre determinados aspectos, ora contenção em outros aspectos com excesso de material", conta o autor.
Textos e contextos
"Em todo o mundo, muito mais do que uma escola literária e artística, o romantismo foi um movimento oceânico, irresistível, inquietador, demolidor e renovador, abrangendo todos os aspectos da sociedade, renovando e enriquecendo a sensibilidade do homem ocidental, abrindo imensos horizontes espirituais, estimulando uma nova sociedade, com mais igualdade e justiça social", define Ubiratan Machado.
No Brasil, o fenômeno se repetiu. "O romantismo literário, - que se iniciou em 1836, com a publicação dos ´Suspiros Poéticos e Saudades´, de Gonçalves de Magalhães,- foi apenas um aspecto da grande renovação que as ideias e ideais românticos trouxeram à sociedade brasileira: ideias do socialismo utópico, fim da escravidão, libertação da mulher, entre outros. Antes da eclosão romântica, ideias típicas do romantismo, como a liberdade dos povos, o primado do amor, o predomínio do sentimento sobre a razão, já se insinuavam de maneira quase imperceptível na sociedade brasileira, estando presente no movimento de independência, em alguns poetas, os ´ pré-românticos´, e na oratória de Frei Francisco de Mont´Alverne".
No livro, Ubiratan Machado se concentra, sobretudo, nas cenas artísticas do Rio de Janeiro, então capital do Império, e em São Paulo, cidade que conhecia um rápido crescimento. No entanto, nas palavras do autor, "o romantismo foi uma espécie de vírus", atingindo todos do Império. "Mas, com raras exceções, - Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Salvador, - faltava nas cidades brasileiras um ambiente adequado ao surgimento de uma autêntica vida literária", explica.
O Ceará era destes lugares cujo terreno não se mostrava tão propício ao florescimento de uma geração de escritores. "Referindo-se ao Ceará, na década de 1840, Antonio Sales escreveu que ´a vida literária propriamente dita continuava, porém, em estado de nebulosa no espírito cearense´. Só a partir de 1856, quando Juvenal Galeno retornou a Fortaleza, houve um esboço de vida literária, ativada com a presença de Gonçalves Dias na cidade, em 1859. Mas, o historiador Cruz Filho opina que só houve vida literária na província a partir de 1872, isto é, fora do período romântico".
Percalços
Livros como "A vida literária no Brasil durante o romantismo" ajudam a construir um outro retrato do romantismo - e mesmo do fazer literário. Ao abranger questões que vão além da literatura, Machado mostra que não havia um mar de rosas estendido diante de Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e José de Alencar. O romantismo atingiu um alto grau de prestígio, foi admirado mesmo por D. Pedro II, importante incentivador de uma literatura nacional. No entanto, o prestígio dos escritores era oscilante. Ser poeta era algo bem visto até o sujeito concluir seus estudos universitários. Uma vez formado, precisava abandonar os "devaneios" e se concentrar na vida prática (racionalizada e antiromântica por natureza).
"A pressão social era forte. O médico Manuel Antonio de Almeida abandonou a ideia de clinicar, convencido de que ninguém iria consultar um doutor que fazia literatura. Luís Delfino perdeu todos os seus clientes, quando descobriram que o jovem médico era um poeta", enumera Ubiratan Machado. "No caso de José de Alencar, o assunto ganha contornos dramáticos. Teimoso e com uma vocação literária avassaladora, ele enfrentou a arrogância dos homens de siso, como então se dizia, e, com sua inteligência extraordinária, se impôs como jornalista e romancista irresistivelmente romântico, desde a publicação de ´O Guarani´, em 1857. Mas pagou um preço caro por isso, perseguido e ridicularizado na Câmara dos Deputados. Um deputado baiano, referindo-se ao escritor, chegou a afirmar que a literatura era um emprego banal de tempo, que impedia a seu cultor ´a apreciação séria e grave das necessidades do País´".
O ambiente literário era restrito e não havia uma crítica estabelecida a dialogar com os autores. "Os escritores viviam se encontrando na rua do Ouvidor, nas livrarias, nas redações dos jornais. E, como os românticos eram muito melindrosos, prevaleceu a crítica de compadre, sempre elogiosa. Para que entrar em atrito com o colega? Houve tentativas interessantes, mas isoladas, de se livrar dessa camisa de força, como o artigo de Dutra e Melo sobre ´A Moreninha´, em 1844, uma análise séria e até mesmo arguta do romance de Macedo, mas que não deu frutos", reconstitui. Machado conta que houve, sim, momentos em que a crítica tornou-se violenta, ensaiando certa independência. "Como Gonçalves Dias arrasando um poema de Teixeira e Sousa, e algumas análises críticas de Manuel Antonio de Almeida e Bernardo Guimarães. Mas, só na década de 1860, o quadro começou a mudar, com Machado de Assis, apontado por José de Alencar como o primeiro crítico brasileiro. Mas o mestre de Dom Casmurro preferiu seguir outros caminhos".
Teoria literária
A vida literária no Brasil durante o romantismo Ubiratan Machado
Este conteúdo foi acessado em 5/04/2010 Diário do Nordeste. Todas as modificações posteriores são de responsabilidade do autor original da matéria.
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