Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

18/02/2010

A lógica do absurdo

Por: Irinêo Baptista Netto
Alice no País das Maravilhas é um livro de terror. Mas o monstro que assombra suas páginas é a falta de sentido. Agora e nos próximos meses, o nonsense criado por Lewis Carroll (1832-1898) vai tomar conta das livrarias e dos cinemas. No Brasil, duas novas traduções ilustradas saem pela Cosac Naify (já lançada) e pela Salamandra (na semana que vem).
Em abril, o cineasta Tim Burton, senhor de um mundo característico que vai de Os Fantasmas Se Divertem (1988) até Sweeney Todd (2007), dará sua visão da história da menina que segue o Coelho Branco até a terra onde lagartas fumam narguilé e marmotas contam histórias indecifráveis.
Carroll publicou o livro em 1865, fazendo a vontade de Alice Lidell, filha de um acadêmico de Oxford com quem ele gostava de passear. Ele contou a história para a menina e ela pediu que a colocasse no papel.
Não é segredo que o escritor gostava de crianças, “exceto meninos”. Seu “público-alvo” era de meninas na faixa dos 9 anos. Muito se fala sobre sua pedofilia – são famosas as fotografias que fez de garotinhas vestidas como mulheres –, mas não há nenhum indício de que tenha cometido algo além de fantasias.
O fato é que Carroll tinha uma compreensão do universo infantil fora do comum e criou um livro que, 145 anos depois, soa novo e ousado. Depois de entrar no País das Maravilhas, Alice passa por uma série de provações, encontra figuras bizarras e tem conversas estranhíssimas. É como uma sequência de esquetes que funcionariam bem uma sem a outra e têm poucas relações entre si – a não ser a evidência de todas se passarem no mesmo lugar.
Em 1977, numa das traduções mais amadas do país publicada pela Summus, inclusive pelo pioneirismo, Sebastião Uchoa Leite (1935-2003) fez uma apresentação esclarecedora para os leitores da época, dizendo que as histórias de Carroll “estão inscritas num circuito fechado de referências (histórico-linguísticas)”. Ele não descarta a leitura feita “pelo prazer do nonsense”, mas diz que os livros não podem ser interpretados aleatoriamente. Ele usa o plural porque quando se fala em Alice no País das Maravilhas, não se deixa de fora As Aventuras de Alice através do Espelho (1871), a sequência que completa e desenvolve o primeiro episódio, apresentando outros personagens – o mais notável é o ovo Humpty Dumpty.
Matemático de formação, Carroll provoca o leitor com quebra-cabeças, inversões (grita-se para contar um segredo no ouvido) e palavras-valise (quando dois significados são unidos para criar um terceiro, como em “turpente”, que casa tubarão com serpente).
“Não apresentando uma ‘moral da história’ nos moldes tradicionais, isto é, auto-explicativa, a obra de Carroll mantém-se aberta a muitas interpretações, podendo seus sentidos variarem de acordo com a perspectiva adotada pelos leitores do século 21, que não necessariamente precisam conhecer o universo inglês da segunda metade do século 19 para participar da aventura de Alice”, diz Patrícia Cardoso, doutora em Literatura e professora de Letras na Universidade Federal do Paraná.
Foi inspirado pelo clássico que Décio Pignatari escreveu Bili Com Limão Verde na Mão (Cosac Naify), também centrado numa menina que tenta lidar com a entrada na adolescência – uma de tantas leituras possíveis para a Alice. Pignatari deposita suas fichas na linguagem: ela faz valer todo o papel e a tinta gastos nas inúmeras edições da obra e é responsável pela influência de Carroll sobre meio mundo, o James Joyce de Finnegans Wake inclusive. “Carroll não é de ficar só na historinha e prefere envolver a personagem na linguagem”, diz o escritor.
Numa comparação com o Harry Potter de J.K. Rowling, referência-mor da literatura infanto-juvenil neste século, a psicóloga Juliana Radaelli observa que “Harry ensina objetivamente sobre o bem e o mal”, servindo de exemplo de como ser “correto” na vida. Já Carroll mostra que a noção que se tem de identidade é fumaça.
“As aventuras de Alice nos mostram que, a cada encontro com o diferente, precisamos rever nossa lógica, abrindo um espaço para a dúvida sobre o nosso próprio ser”, diz Juliana.
Carroll satiriza o mundo dos adultos e faz Alice tomar um líquido misterioso para crescer, ou comer pedaços de cogumelo para diminuir de tamanho (ou voltar a crescer). Pense numa criança que o tempo todo é lembrada pelos pais de que é grande demais para fazer certas coisas, mas pequena demais em relação a outras.
“Nesse jogo tenso entre o sonho e a realidade, entre a idade adulta e a infantil, que nos propõe Carroll, as quase incontroláveis alterações no tamanho da heroína servem como metáfora da dificuldade que volta e meia se apresenta em nossa busca por apreender o mundo. Como ela, nosso destino é sermos crianças em um mundo de adultos e adultos em um mundo de loucos”, diz Patrícia.
Se houvesse um guia dedicado ao País das Maravilhas, ele mandaria entrar no território de Carroll como quem aceita um desafio e ter em mente que o absurdo faz parte da viagem.
Publicado em 13/02/2010 e acessado em 18 de fevereiro de 2010.
Toas as alterações posteriores são de reponsabilidade do autor original da notícia.
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