Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

04/01/2010

Canção do exílio

Por Raul José Matos de Arruda Filho
Raros são os pesquisadores da literatura brasileira capazes de responder a pergunta: qual é o romance (ou o poema ou o conto) arquétipo sobre o Brasil? Se fosse feita pesquisa sobre o tema, grande seria a probabilidade de serem lembrados vários clássicos, aqueles livros que todo mundo finge ter lido algum dia, provavelmente para escrever tarefa escolar, e que, por isso mesmo, ao serem citados, não comprometem a opinião de ninguém. Macunaíma (Mário de Andrade) ou Grandes Sertão: Veredas (Guimarães Rosa) são boas alternativas. Entre os textos de não ficção, ninguém esquece Os Sertões (Euclides da Cunha), Casa Grande & Senzala (Gilberto Freyre) ou Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Hollanda).
Paradoxalmente, também há dificuldades para apontar exemplos (ficcionais ou não) capazes de retratar a ausência (da pátria, do sentimento de pertença). Mesmo em romances emblemáticos como Zero (Ignácio de Loyola Brandão), Reflexos do Baile (Antonio Callado) ou Contra o Brasil (Diogo Mainardi), onde as mazelas nacionais são dissecadas, não é possível ignorar que, entre o texto e as entrelinhas, sopra a esperança anestésica, sebastianista, de que alguém surgirá, em algum momento, para consertar a bagunça.
Assim, vamos em frente, construindo um Brasil sem senso crítico, sem identidade, inclusive porque toda vez que surge alguma questão que exige um posicionamento, os “ishpertos”, que raramente encararam as questões cruciais de frente, procuram impor a concórdia, “o deixa pra lá”. Afinal, quem está interessado em mexer nas feridas, em abrir os olhos, despertar do sonho e mergulhar no pesadelo?
Entre as inúmeras conclusões possíveis a partir dessas rápidas observações, é possível concluir que as narrativas brasileiras publicadas nos últimos 20 ou 30 anos estão contaminadas por temas que pouco ou nada comprometem. E isso também significa um posicionamento ideológico mais comercial (inclusive porque a literatura brasileira nunca escondeu o desejo voraz de estar inserida no mercado econômico).
Em outras palavras, a produção literária mais recente (sem culpa, sem constrangimentos) está procurando, com todas as forças possíveis, negar um contexto sociocultural, um constructo histórico-geográfico particular, único, inequívoco, e que, na falta de uma melhor expressão, poderíamos chamar de brasilidade. Sem deixar de lembrar que “a grama do vizinho é mais verde do que a nossa” e de que é da natureza humana desejar o que nunca terá, a literatura brasileira parece estar migrando (física e psicologicamente) para regiões ou para espaços que não se encontram entre as fronteiras políticas do Brasil.
Particularmente assustador, para os estudos literários, esse distanciamento geográfico (em que o exílio voluntário parece mimetizar a ritualização de algum épico extemporâneo) está contraposto a textos baseados na realidade urbana e rural do Brasil. Alguém saberia explicar por que o Chico Buarque escreveu um romance centralizado em Budapeste, uma cidade que ele admitiu nunca ter visitado? Por que ambientar em Buenos Aires uma novela tão bonita como Golpe de ar, de Fabrício Corsaletti? Nos romances de Bernardo Carvalho, a desterritorialização é um elemento natural. Em Medo de Sade, a França; Nove noites focaliza o Xingu (que é uma espécie de não-lugar, inclusive porque poucos brasileiros conseguem localizá-lo em um mapa!); em Mongólia, a Mongólia; parte de O sol se esconde em São Paulo se passa no Japão; e, em O filho da mãe, a ação narrativa transcorre em São Petersburgo. O mais estranho é que todos esses textos (exceto Nove noites e uma ou outra cena mais específica) poderiam ser ambientados naquele Brasil que o Jornal Nacional retrata diariamente. Quem tem a violência do Rio de Janeiro não precisa da guerra da Chechênia para discutir a barbárie humana.
No mesmo tom, a ficção omite a história recente do Brasil. Sobre os “anos de chumbo” (também chamados pela Folha de S.Paulo, de “ditamole”) se contam nos dedos os autores que fazem algum comentário ou situam as suas narrativas nesse período. No geral, há um vácuo narrativo entre 1964 e 1980, como se nada tivesse acontecido nesse período – ou melhor, como se o que ocorreu nesse período não interessasse para a confecção literária. No mesmo projeto está a morte de Tancredo Neves, que ainda está esperando por algum autor capaz de transformar a dor nacional em narrativa (a exceção é o belíssimo conto Cortejo em Abril, da Zulmira Ribeiro Tavares). O desastre Collor de Mello não criou uma geração literária “cara-pintada”. Os governos Fernando Henrique e Luiz Inácio da Silva são, literariamente, intocáveis.
Além disso, é particularmente significativo o fato de esses mesmos “retirantes” recusarem a criação de uma nova Pasárgada. Como se tivessem aversão aos “paraísos artificiais”, preferem localizar os seus enredos em território estrangeiro, um ambiente que sempre está impregnado do glamour que não encontram no Brasil. George Steiner, ao escrever sobre aqueles que transitam entre o local de nascimento e o exílio, entre a língua pátria e a estrangeira, observou que a produção desses escritores se mostra “desarraigada porque em casa de modo tão variado”. Sem discutir a ambiguidade do que significa estar “em casa”, e relacionando esse comentário com a literatura brasileira, fica a impressão de que, descontados taras e fetiches sexuais, houve contaminação por algum tipo de ressentimento sem substância, como que a dizer que nada de bom ou de aproveitável pode ocorrer no país onde nascemos. Para Carlos Fuentes, “o romance não mostra nem demonstra o mundo, senão que acrescenta algo ao mundo”. E isso quer dizer, fundamentalmente, que, na medida em que a literatura brasileira está perdendo o contato com as suas raízes mais inequívocas, os livros resultantes não estão acrescentando muitas coisas ao mundo literário. Envolta na razão econômica e evitando abordar “assuntos chatos” (o passado de opressão política, o Carnaval, o futebol, o racismo encoberto), a ficção nacional está sofrendo da necessidade psicológica de retratar o espaço social globalizado, onde, por um desses enganos tão comuns na modernidade, acredita estar inserida.
A coleção Amores Expressos, publicada pela Companhia das Letras, e organizada por João Paulo Cuenca, talvez explique parte desse impasse. Com recursos arrecadados através da Lei Rouanet, 16 escritores estão passeando por aqueles lugares que fazem sucesso nas colunas sociais (Paris, Tóquio, Buenos Aires,...). A ideia é colher material para escrever “histórias de amor”, além de descobrir o que está além das fronteiras físicas do Brasil. Como nada se compara às belezas da ilusão, esse projeto mostra um nítido desprezo por Ouro Preto, Belém do Pará ou Campo Grande. Cidades como Manaus (ver os romances e contos de Milton Hatoum) ou Santos (que o Alberto Martins descreveu com paixão em A história dos ossos) foram esquecidas. Também foram anulados da memória narrativa o norte do Paraná (cenário de parte da ficção de Domingos Pellegrini) e o sertão cearense (retratado, em Galileia, de Ronaldo Correia de Brito). O policromatismo brasileiro foi substituído por cartões-postais (ou romances) remetidos do outro lado do mundo, sinalizando para um elemento inevitável: a vida (social ou literária) brasileira está se transformando em uma coleção de souvenires.
Simultaneamente, essa procura pelo exótico parece ignorar que a terra do futebol, do turismo sexual e do pagode (ou da axé-music ou de um desses ritmos que utilizam, no máximo, dois acordes) está repleta de temas humanos e literários. Ou, em versão mais cínica, aproveitando os versos do Gonçalves Dias: “Minha terra tem palmeiras, / Onde canta o sabiá; / As aves, que aqui gorjeiam, / Não gorjeiam como lá”.
P.S.: Caminhar na contramão é perigoso – ao mesmo tempo, “escolher o caminho menos trilhado”, como dizia o Robert Frost, é o que constitui “toda a diferença”. Parte das considerações acima não se aplicam em alguns dos contos do livro Meu amor, de Beatriz Bracher. Sem medo, consciente de que temos problemas que precisam ser discutidos literariamente, Beatriz ficcionalizou várias situações recentes: a garotinha que, visitando o pai, caiu (ou foi jogada) de uma janela; o menino que, vítima de sequestro, foi arrastado pelo asfalto. São situações exemplares, seja pelo horror, seja pela constatação de que a que a vida é mais cruel do que a literatura. Se isso não fosse verdade, como explicar a história da prisão da menina paraense, que foi seviciada durante mais de mês por cerca de 30 homens?
“Não permita Deus que eu morra, / Sem que eu volte para lá; / Sem que desfrute os primores / Que não encontro cá”, dizem os versos do poeta.
* Doutor em Teoria da Literatura pela UFSC (raul.arruda@gmail.com)
RAUL JOSÉ MATOS DE ARRUDA FILHO *

Fonte: Diário Catarinense
Esta notícia foi acessada em 04/01/2010 e pode ser lida na íntegra no sítio:
http://www.clicrbs.com.br/diariocatarinense/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&source=a2759289.xml&template=3898.dwt&edition=13798§ion=1831
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