Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

18/11/2009

São Bernardo: o desafio de Graciliano Ramos

Será que qualquer um poderia escrever um livro? Mesmo um indivíduo supostamente ignorante, sem cultura literária e que aprendeu a escrever na cadeia, do modo mais precário? E se o indivíduo, além de tudo, for assumidamente insensível, desprezando qualquer emoção e, por consequência, também a arte? E, pior ainda, se ele for um crápula, uma espécie de assassino, um poço de brutalidade com a família, com os amigos, com os empregados?
Quando escreveu São Bernardo (1934), o alagoano Graciliano Ramos tratou essencialmente daquelas questões, criando uma das maiores obras de nossa literatura. Sabemos que Graciliano sempre foi visto pela crítica como um dos clássicos da prosa nacional, disputando com Machado de Assis e Guimarães Rosa. Os três foram autores que se impuseram desafios enormes, deles saindo vitoriosos.
Em São Bernardo, o problema foi construir uma linguagem simultaneamente literária e correta, além de verossímil na voz que Graciliano escolheu para narrar o curto romance, a voz de um personagem-narrador com todos os defeitos. Ou seja, uma linguagem também “pobre”. Paulo Honório é o fazendeiro culpado pelo fracasso em acolher os sentimentos e em respeitar o próximo. A narrativa corre em primeira pessoa, acompanhando o processo mental do narrador. Ele faz um retorno às raízes de seu fracasso humano, apesar do relativo sucesso econômico.
O fazendeiro é um self-made man, um sujeito que não era nada e que, pela dedicação e sagacidade nos negócios, consegue comprar a fazenda São Bernardo, transformando-a numa propriedade produtiva. O motivo social – Graciliano escreve no calor da hora, sob a Revolução de 30 e a discussão sobre o socialismo – segue integrado à dissecação da personalidade do narrador, sua incapacidade para os relacionamentos humanos. Cabe ao leitor decidir como os dois processos – o social e o individual – interagem. Tudo o que temos é a opinião tosca do fazendeiro-narrador, o único ponto de vista disponível. O leitor deve discutir com ele, vendo-o como humano ou monstruoso, ou um humano monstruoso.
Graciliano é polissêmico. Seu livro pode ser: um estudo psicológico sobre a mente de alguém angustiado pela culpa; um tratado sobre a implantação do capitalismo no campo brasileiro; uma novela de suspense, envolvendo ciúme, assassinato e suicídio; um discurso sobre classes sociais; uma discussão de metalinguagem: como se deve narrar um romance, e o porquê de o escrever.
Graciliano juntou tudo num livro do nível dos melhores de Kafka, Dostoievski ou Italo Svevo.
A linguagem é veloz, não se afoga sob o peso da tragédia. Os romancistas brasileiros dos anos 30 são fiéis ao Modernismo, querem diminuir o peso da “literatura” na literatura, aproximando-a da vida e dos problemas cotidianos, sociais e existenciais. Assim, insistiram na narrativa em primeira pessoa, no recurso da memória. O discurso sobre o social se faz simultâneo à construção de uma personalidade que depõe. O autor deixa de ser um observador externo, como no Naturalismo, e passa a tentar acolher o discurso do outro, como o do brutalizado Paulo Honório de São Bernardo, criando autenticidade.
Graciliano Ramos, que foi comerciante, prefeito do interior, preso político, escritor empobrecido, mais que tudo, foi o melhor artesão da linguagem em prosa dos anos 30. São Bernardo foi seu primeiro grande desafio e foi mostrando ao leitor as dificuldades próprias da escrita que Graciliano saiu vitorioso.
Ricardo Pedrosa Alves é escritor e mestrando da UFPR.

Fonte: http://portal.rpc.com.br
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