Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

03/11/2009

Livro reúne haicais brasileiros de Monteiro Lobato a Millôr

Poema de origem japonesa e secular, o haicai atravessa a literatura brasileira há 103 anos, estreado por Monteiro Lobato em 1906. O principal da produção no Brasil destes três versos líricos, que tradicionalmente dizem respeito à natureza e traduzem uma opção de vida zen-budista, foi coletado por Rodolfo Witzig Guttilla, no livro Boa Companhia: Haicai (Cia. Das Letras, 2009).
O modernista Oswald de Andrade, o poeta Carlos Drummond de Andrade, os concretistas Décio Pignatari e Haroldo de Campos, o humorista Millôr Fernandes, homens das letras, todos se dedica(ra)m à produção de haicai e estão reunidos no livro. Na introdução, Guttilla explica em detalhes a origem do haicai no Japão, sua chegada e percurso no Brasil.
O poeta Paulo Leminski (1944-89) tem importância central na consolidação e prática do haicai na literatura brasileira Obra leminskiana publicada pela editora Brasiliense em 1983, que há mais de duas décadas vinha acolhendo o gênero, Caprichos & relaxos realiza a acomodação perfeita do haicai, com estilo próprio e propício para escritores e companhia ilimitada o praticarem.
Mais do que isso, Leminski fez o haicai se abrasileirar, apresentando-o à sua mulher, também poeta, Alice Ruiz. Sua morte, em 1989, não atingiu a produção de haicai no Brasil muito porque Alice adotaria o zen-budismo com a convicção necessária para passar a ministrar, um ano depois, oficinas em muitas cidades, ensinando e disseminando o gênero.
Alice conta que se espanta com a popularidade atual do haicai. Ela comemora 19 anos de oficina e arrisca uma explicação:

"Como é curto e privilegia a síntese, você aprende a dizer o que importa em poucas palavras, o que é uma tendência nossa. Hoje, vivemos um tempo sem tempo."
Em 2009, Alice Ruiz ganhou o prêmio Jabuti pela segunda vez, no gênero poesia, com o livro Dois em um (Editora Iluminuras, 2008).
João Guimarães Rosa, Mario Quintana e Manuel Bandeira também produziram haicai, mas não puderam ser reunidos em Boa Companhia, observa Guttilla na introdução do livro. Os haicais de Alice reunidos nessa coletânea foram feitos em ocasiões diferentes, segundo conta a escritora nesta entrevista.
Terra Magazine - Os seus haicais flagram momentos, passagens, em que o eu-lírico parece estar só. É isso mesmo? A escrita é fruto da solidão?
Alice Ruiz - Interessante porque, se você pegar o haicai como prática zen, uma das atitudes é de solidão. Mas, veja bem, é o estado solitário positivo. No sentido de centramento, de estar com você independentemente de estar na multidão ou não. Haicai é voltado para a natureza, uma integração com a natureza onde não há interferência das pessoas mesmo que elas estejam do seu lado. Isso dentro dos cânones nipônicos, claro, na tradição.
Mas tem uma certa melancolia, não tem?
Aí é outro estado (risos), estado chamado sabi. Literalmente é tristeza, mas nesse caso é como se tivesse nostalgia, não chega a ser tristeza. É uma integração despojada, quase que abrir mão de você.
É difícil conseguir isso.
E são treze. Imaginou?! (risos)
Quando a senhora sente vontade de fazer um haicai e não um poema?
Quando você está com esses treze estados imbuídos dentro de você, quando você está completamente integrada com a natureza, com o todo. A gente não é um ser à parte. Dentro do pensamento oriental, não existe um eu substancial. Quando você se sente integrado com o todo, voltado para a natureza, o haicai acontece. É bem diferente da poesia, da música, da pintura, das artes ocidentais, onde se coloca os sentimentos. O haicai é quase um exercício.
Mas a senhora continua fazendo poesia...
Sim, poesia e letras de música.
A relação com a natureza no Oriente é bem diferente da que se tem no Brasil, ainda mais em São Paulo (onde Alice mora ). Nos seus haicais, a abordagem da natureza parece singela: a chuva, o sapo, o sol...
Claro, mas mesmo a gente vivendo no meio urbano, temos árvores, pássaros. Na frente da minha casa, tem uma pitangueira, e enche de passarinhos. Ela vem até a gente, mas claro que no meio urbano fica mais difícil. Tudo o que te falei tem a ver com o haicai nipônico, dentro da tradição. No Brasil, alterou-se tanto que tem até tercetos - isto é, estrofes de três linhas - que alguns ainda chamam de haicai, mas... Tem o "poemínimo", o "poetrix", que o baiano Goulart Gomes batizou, o "haiquase" (risos) que muita gente usa. No Brasil houve muita mudança, desde o Modernismo (primeira metade do século 20) houve muita transformação, embora tenha praticantes, como eu, do poemínimo.
Como é a produção de haicai no Brasil?
Tenho achado ótima. Dou oficina de haicai desde outubro de 1990, estou comemorando 19 anos de oficina, e é impressionante a quantidade de pessoas que se interessam por haicai, muita gente que nunca fez poesia no Brasil. Viajo muito, por conta das oficinas, e as pessoas me trazem livros de haicais, que nem sempre são haicais. Se difundiu muito no Brasil. Como é curto e privilegia a síntese, você aprende a dizer o que importa em poucas palavras, é uma tendência nossa. Hoje, vivemos um tempo sem tempo.
Mas não toma tempo sintetizar?
(risos)... A síntese é bem-vinda. Toma tempo assimilar, incorporar (os estados). Por isso que falo em atitude. É engraçado falar de atitude para poesia, mas para fazer haicai é preciso assimilar dentro de você. Toma tempo fazer esse trabalho em você, pode levar a vida inteira... Mas haicai é um flash, é como... o ascender de um vagalume.
Quando vem, vem pronto?
Quando você está no estado certo, sim. Às vezes, precisa melhorar.
Boa companhia: Haicai
De Vários autores
Org. Rodolfo W. Guttilla
Ed. Cia. das Letras

Entrevista concedida a Terra Magazine
http://terramagazine.terra.com.br
Recomendar esta notícia via e-mail:

Campos com (*) são obrigatórios.