Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

23/09/2009

Literatura Infanto-juvenil ou literatura?

Rodrigo da Costa Araújo (UFF/FAFIMA)
“Literatura é uma maneira de ir exorcizando tanta coisa vista, sentida e - sobretudo- reprimida”.
Lygia Bojunga Nunes
Toda a função da arte consiste em inexprimir o exprimível, em arrebatar à língua do mundo, que é a pobre e poderosa língua das paixões, uma fala outra, uma fala exata.
Roland Barthes
Pensar a literatura infantil é, primeiramente, pensar em algumas reflexões. O que é uma literatura voltada para o público “infantil”? O que distingue esse gênero da literatura destinada ao público adulto? Qual a ideologia por trás da obra dita infanto-juvenil? Essas são, dentre várias, algumas perguntas plurais que podem circular num primeiro contato com textos literários ou livros voltados para o público “infanto-juvenil”.
Refletindo sobre essas perguntas, a literatura infantil se configura enovelada nas questões que envolvem a educação, na intenção (e tensões) das relações adulto/criança, no texto e no leitor, na dependência infantil em relação ao adulto, na emancipação do receptor, nas intricadas relações em que predominam o didatismo do texto e os valores estéticos.
Ela - a literatura infanto-juvenil - não obstante as amplas conquistas na sociedade pós-moderna, ainda, infelizmente, tem sido vista por muitos leitores, e também pseudo-escritores, de forma pejorativa ou simplesmente como mero instrumento de intenção didático-pedagógico-educativa. Muitas vezes, isso leva a crer, ou mesmo induz a pensar que o significante “infantil” assume semanticamente para muitos, o valor de infantilidade, como se a menoridade do leitor infantil fosse transferida (e transcrita) ao texto literário, tornando-se, assim, erroneamente, uma espécie de pseudoliteratura ou uma literatura marginal.
Com esse pensamento, o lugar ocupado pela literatura infanto-juvenil na arte literária reflete, de algum modo, o lugar ocupado pela criança na sociedade, já que ela, inserida na concepção de mundo regida pelo adulto, ocupa um lugar de “inferioridade social”. Esse mesmo viés de leitura é estudado, criticamente, em Ligia Cadermatori ao refletir sobre o conceito de literatura infantil e, por isso afirma: “a principal questão relativa à literatura infantil diz respeito ao adjetivo que determina o público a que se destina” (1994, p.8). A literatura infantil, então, atrelada a um adjetivo pressupõe que sua linguagem, seus temas e o seu ponto de vista objetivam um tipo de destinatário em particular, diz a estudiosa no assunto. A literatura, puramente enquanto substantivo, ao contrário, não predetermina seu público, supondo-se que este seja formado por quem quer que esteja interessado nela.
Por outro lado, como afirmam Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1984), apesar da depreciação com que o gênero é reiteradamente, considerado, o mesmo tem se tornado um relevante segmento da indústria editorial, além de ter integrado os currículos universitários. O fato é que, mesmo sendo considerada “menor” ou “marginal”, a obra infantil parece ainda mais difícil que a voltada para os adultos, uma vez que precisa superar o ranço pedagógico e utilitário e o comprometimento com as “facilidades sentimentais”. Críticos como Khéde (1983) e Cadermatori (1994) observam, portanto, que esta adjetivação ao gênero denota uma limitação em razão da escolha de um público específico - “infantil” e “juvenil” - como distinto e separado dos receptores da obra literária em geral. E isso, na opinião de Khéde tem como causa o próprio contexto cultural em que se verifica a bipartição entre o mundo do adulto, com seus valores a serem alcançados, e o mundo infantil, com seus “defeitos” a serem “corrigidos”.
Nesse sentido, e contrariamente a todas essas limitações, pensar a literatura infantil, é antes de tudo, pensar a literatura. Não podemos, de forma alguma, desvincular a literatura de literatura infanto-juvenil. Elas não se opõem, muito pelo contrário. Dialogando e reforçando esse discurso, Ana Maria Machado, em Contracorrente (1999) e Texturas (2001), sublinha que o importante, ao pensar a literatura infantil é o substantivo literatura e não o adjetivo infantil. Dessa forma, não se trata simplesmente de livros para crianças, mas antes, trata-se de literatura, de textos, que, rejeitando o estereótipo, apostam na invenção, na criatividade e no valor estético.
Assim compreendido, o espaço textual da literatura infantil, como o da literatura, é formado por um conjunto de elementos semi ambivalentes. O deciframento é sempre uma escolha. E se o texto ou obra infantil entendidos como jogo barthesiano da escritura-leitura, só passarão a existir a partir de sua recriação numa leitura subjetiva e individual, a cada fruidor-, seja infantil, juvenil ou adulto-, a obra se apresentará, diferentemente, entre si mesma e ao mesmo tempo completa e incompleta.
Nesse plano, o texto literário é entendido como objeto de prazer que está constantemente estruturando-se, mantendo-se num estatuto da enunciação. Essa estruturação infinita do texto, que Barthes chama significância – espaço específico onde se redistribui a ordem da língua – faz-se sensorial: o sentido das coisas nasce de nossos sentidos, é o sentido produzido sensualmente, o corpo e sua vivência, a fragmentação e a cultura, disseminação de suas características segundo fórmulas desconhecidas.
De qualquer forma, é preciso pensar que o que importa para a qualidade na literatura infantil é o valor literário do texto, a sua literariedade, sem perder de vista os aspectos sociais, históricos, religiosos e filosóficos que perpassam o texto. Portanto, é sempre importante lembrar algumas reflexões sobre esse gênero:

1. A literatura infanto-juvenil é, antes de tudo, literatura.
2. Ela deve ser conceituada pelos elementos internos enquanto obra literária, mas não pelo seu receptor ou pela intenção ideológica veiculada por uma escola ou autor;
3. O livro para crianças, inserido na sociedade pós-moderna, capitalista e altamente consumista, é um objeto sedutor, atraente e, por isso mesmo, utiliza recursos como ilustração, formato, funcionando como suporte ou intenção, muitas vezes, para fins mercadológicos. Outras vezes, por trás da aparência escondem-se valores destorcidos ou uma “falsa literatura infanto-juvenil”;
4. O interesse da criança por alguma obra está relacionada a vários fatores, dentre eles, o contexto social em que vivem, o tipo de relação com o livro, o seu estágio psicológico, o contato anterior com outros livros etc. Portanto, querer que a obra seja escolhida, definida e conceituada pelo receptor, exclusivamente, - a criança - pode gerar muitos conflitos ou fortalecer o mercado capitalista e à continuação de um sistema de dominação.
5. A literatura infanto-juvenil deverá ser, na maioria das vezes, em primeiro lugar, a obra de um artista, um artesão da palavra, que provocará o prazer e o diálogo, a imaginação, o lúdico através do dramático de sua técnica, mas, principalmente, um trabalho que realiza com a linguagem pela palavra;
6. Os textos e a literatura infantil vivem no mundo discursivo da textualidade e dos diversos meios expressivos, portanto, é preciso ler estes recursos lingüísticos com a organização de linguagens, na maioria das vezes como prática intersemiótica;
7. A literatura infantil contemporânea, semelhante às idéias levantadas por Lucrecia Ferrara em A Estratégia dos Signos (1981), deve refletir sobre questões essenciais da modernidade: o estranhamento, o distanciamento, a recepção, o dialogismo e a paródia; a dialética escritura-leitura;
8. A literatura infanto-juvenil não poderá desprezar a figura do receptor e seu processo de recepção, diferentes em qualquer outra produção-recepção artísticas;
9. O livro infantil, aparentemente, ingênuo esconde outros discursos, outras linguagens, inúmeras leituras;
10. O texto, a leitura e o leitor, e muitas vezes, o autor estão intimamente relacionados no trabalho com a literatura infanto-juvenil.
Enfim, apesar do forte apelo mercadológico que a escola apresenta, a literatura infanto-juvenil tem se libertado do pedagogismo e do moralismo que a aprisionavam e tornavam problemática. No entanto, permanece, nesse gênero, a dificuldade que lhe é inerente: a de ser escrita por adultos para crianças.
Ela, de qualquer forma, no contexto contemporâneo, e influenciada pelos meios de comunicação, impõe uma reflexão sobre as diversas linguagens que interferem no código literário, obrigando-o a novas transformações. Do diálogo com o cinema e com as artes plásticas surgem obras que privilegiam a imagem, a fragmentação, a montagem, a intertextualidade, a citação dos diversos discursos, sem, contudo, perder o jogo lúdico e atraente. Desse recurso híbrido, a ilustração surge extremamente aperfeiçoada e integrada à narrativa, porém amplificada pelos diversos recursos, revitalizando a obra em si.
Ler literatura infantil, então, é deparar-se com esse mundo de signos, pautado na novidade e na potência de linguagens, no lúdico e no ambíguo, na suspensão e na “leitura captadora da ficção” exigindo do leitor a interação de mecanismos de representação e possibilidades de leitura.
http://www.arscientia.com.br/materia/ver_materia.php?id_materia=516
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