Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

04/08/2009

Letramento digital e currículo escolar

A crescente facilidade de acesso ao computador conectado tem alterado as práticas de uso da escrita de todos os segmentos da sociedade, alguns mais, outros menos
A palavra está se libertando dos limites do papel e da corporeidade física da tinta. Líquida, infiltra em novos espaços e mescla-se com linguagens visuais, sonoras e espaciais, propondo e criando novas relações de sentido. Imaterial e desencarnada, habita, frequenta e cria ambientes digitais. O verbo, descentralizado, numa nova orquestração de modos de expressão, troca de lugar com as imagens estáticas ou em movimento na centralidade dos sentidos e das significações. Novas sintaxes emergem e novos autores e leitores apropriam-se desse modo de escrever, de ler e de se comunicar. Não, esse não é o futuro. O futuro já passou. Essas são as formas atuais de escrita e de leitura; em outras palavras, são os novos letramentos. Eles não são simplesmente diferentes das formas de escrita tradicionais; são outra escrita. E quando falamos escrita, falamos também em leitura. Falando em leitura e escrita, pensamos em práticas difundidas pelos meios de comunicação e pela escola. As práticas de escrita baseadas no papel e na centralidade do texto verbal sempre foram ensinadas, difundidas e incentivadas pela escola. Porém, a crescente facilidade de acesso ao computador conectado tem alterado as práticas de uso da escrita de todos os segmentos da sociedade, alguns mais, outros menos. Desde as movimentações bancárias mais corriqueiras até a leitura de jornais, revistas e de vídeos sobre praticamente qualquer assunto. Tudo isso disponível na web. Quase tudo isso fora da escola. Explico: salvo em programas e projetos especiais ou a partir de iniciativas individuais, os novos letramentos ainda não foram devidamente incorporados ao currículo escolar. Podemos dizer que os alunos escrevem seus trabalhos em editores de textos e apresentam trabalhos em slides com imagens. Mas ai de nós se os programas para apresentação de slides não viessem com modelos de design, sugestões de cores e de imagens de fundo, etc. - quem se habilitaria a utilizá-los? Essa prontidão para o uso, estrategicamente elaborada pelos fabricantes desses tipos de programas para induzir seu uso e sua aquisição, pode estar nos dando a sensação de que aprendendo a utilizar os programas, dominaremos a sintaxe da produção de textos multimodais, isto é, textos que combinam imagens (estáticas ou não), cores, fontes e tamanhos das letras; tudo isso numa disposição significativa no espaço dos slides e da tela do computador. Arrisco-me a dizer que os novos modos e usos da escrita permanecem marginais na escola. Eles, de certo, estão presentes na escola, pois os alunos misturam os usos que fazem da escrita com os propostos e incentivados pela escola, às vezes com resultados criticados pelos professores, pois levam para a escrita, marcas da oralidade - a outra metade da língua que ainda também não foi completamente incorporada ao currículo. Sim, não se pode negar que na escola a ênfase é dada à língua escrita e suas normas. O português falado aprende-se fora da escola, como, aliás, tem acontecido com a linguagem visual, ou poderia dizer audiovisual. Outras vezes, porém, os trabalhos dos alunos são muito bons: eles combinam de forma coerente os elementos visuais e verbais, produzindo bons textos - lembrando que os textos não são exclusivamente verbais, como podemos ser levados a pensar, pois toda vez que se fala em leitura, interpretação e produção de textos, propõe-se o trabalho com textos verbais. As imagens, as esculturas, a dança, a música instrumental, tudo são textos. Voltando aos alunos: pois bem, os trabalhos são bons, mas o mérito, quase sempre, acaba sendo dado ao indivíduo, aluno esforçado e com dons artísticos; isso quando se tratam de algumas habilidades de uso do computador e de certos programas, como algo dessa geração. Penso, porém, que o domínio das linguagens verbal, audiovisual, gestual e espacial deva ser objeto dos currículos escolares, desde as primeiras séries, pois elas já o são em contexto extraescolar. A criança traz para a escola, desde cedo, um amplo repertório de imagens, sons (verbais inclusive - lembremos que ela conhece o som das palavras, fala,conversa), cores, etc.. Escrever e ler textos que orquestram diferentes códigos e linguagens não são habilidades artísticas, nem privilégio dos jovens ou de alguma geração. Essas novas práticas de escrita, esses novos letramentos, são essenciais para todo sujeito e todo cidadão. Numa sociedade letrada como a nossa, o domínio dessas linguagens e das tecnologias que as possibilitam e veiculam é fundamental para o exercício pleno da cidadania e para a participação social. A escola precisa estar presente.

Luiz Fernando Gomes é doutor em Linguística Aplicada, professor de Linguística e Semiótica e coordenador do CET- Centro de Educação e Tecnologia da Uniso. (luiz.gomes@prof.uniso.br)

http://www.cruzeirodosul.inf.br/materia.phl?editoria=44&id=207620
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