Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

25/05/2009

Murilo Carvalho: "Temos responsabilidades para com os índios"

Murilo Carvalho: "Temos responsabilidades para com os índios"
Pedro Justino Alves
Ao vencer o Prémio Leya com o romance «O Rastro do Jaguar», edição Leya, a vida de Murilo Carvalho mudou, tanto em termos de reconhecimento profissional como a nível pessoal, já que a distinção «fortaleceu o meu ofício de escritor, definindo melhor os rumos de minha literatura». Profundo conhecedor das questões indígenas, o também jornalista acredita que provavelmente viveríamos num mundo diferente se a colonização tivesse tomado outros rumos, com uma melhor integração dos índios na sociedade. Por isso, defende, «as nações têm responsabilidades para com os índios».
Ex-jornalista de origem portuguesa, Pereira decide escrever, no virar do século XIX, a história do seu amigo Pierre, índio guarani levado em criança para a Europa que regressa ao Brasil já adulto para conhecer e encontrar as suas origens. Pelo meio dessa busca pela sua identidade, a Guerra do Paraguai, uma guerra onde «o Brasil se definiu como um império às vésperas de tornar-se república, em que a Argentina conseguiu unir-se, suas diversas províncias tornando-se finalmente um país. E, principalmente, porque a derrota do Paraguai decretou também a derrota de uma vasta população guarani». Em cerca de 600 páginas, Murilo Carvalho conseguiu reunir um conjunto de ideias determinantes que marcaram a história da América do Sul, uma história no fundo pouco exemplar, principalmente para com o povo indígena, um povo «sempre oprimido, sempre vendo a terra encolher sob os seus pés, sempre lutando por uma cultura que desaparecia aos poucos», um povo forçado a acomodar-se às regras e vivências dos colonizadores europeus.
Ao vencer o Prémio Leya (houve mais de 400 romances enviados), o maior prémio monetário da língua portuguesa (100 mil euros), Murilo Carvalho conseguiu colocar em foco um tema que não é habitualmente retratado na literatura brasileira. É hora do Brasil e do Mundo começarem a olhar para si próprios, como fez Pierre…
Quando soube que tinha ganho o prémio disse que não esperava a distinção. Depois de alguns meses, o que mudou na sua vida devido ao Prémio Leya?
A primeira consequência foi o reconhecimento do meu trabalho no Brasil. Desde então tenho sido convidado a participar de vários eventos literários por todo o país. Além disso, fortaleceu meu ofício de escritor, definindo melhor os rumos de minha literatura. Foi, sem dúvida, um reforço fundamental – até mesmo em termos financeiros – para dedicar-me com mais constância a escrever.
Como surgiu a ideia do livro? Porquê escrever sobre os problemas indígenas do Brasil, a escravidão e a Guerra do Paraguai? Porquê estes temas e não outros?
Na verdade o conjunto das ideias que resultaram no «Rastro do Jaguar» nasceu de duas vertentes: uma, a do jornalista que, ao longo de 30 anos, acompanhou a vida difícil dos indígenas brasileiros. Sempre oprimidos, sempre vendo a terra encolher sob seus pés, sempre lutando por uma cultura que desaparecia aos poucos. Outra, a ideia histórica, nascida de uma longa conversa com um sábio guarani, que falou-me de sua cosmogonia, dos seus mitos, do sonho de uma Terra Sem males, dos profetas-guerreiros. E a Guerra do Paraguai, como pano de fundo, porque foi nesses anos que o Brasil se definiu como um império às vésperas de tornar-se república, em que a Argentina conseguiu unir-se, suas diversas províncias tornando-se finalmente um país. E, principalmente, porque a derrota do Paraguai decretou também a derrota de uma vasta população guarani.
Qual a influência da sua formação jornalística na escolha do tema e construção do romance?
O livro é uma espécie de grande viagem pelo Sul da América do Sul: uma região que percorri muitas vezes ao longo da minha vida de repórter. O profundo conhecimento dessa região me permitiu escrever com mais precisão sobre sua geografia, sobre sua gente, sobre suas guerras passadas que ainda hoje continuam, de certa forma, existindo.

Como decorreu a pesquisa, já que o livro é muito rico em detalhes? Se em termos históricos a tarefa talvez seja mais simples, quanto ao resto tudo deve ter sido diferente. Ou não?
É claro que o «Rastro do Jaguar» é um livro de ficção – seus personagens principais são todos criaturas de um autor. Mas a pesquisa histórica – em livros, jornais, relatos da época e viagens a todas as regiões onde a ação ocorre – durou três anos e permitiu inserir nesse contexto tanto os personagens como as suas ações. Todos os fatos históricos são reais.
O que poderia ter sido diferente? Acredita que se a culturas europeias dominantes tivessem integrado os índios na sociedade de outra forma poderíamos ter um país (mundo) diferente nos nossos dias?
Sem dúvida. Mas ao analisarmos o pensamento europeu desde a época do início da colonização da América veremos que, infelizmente, não havia possibilidades de ter sido diferente. A escravidão era quase um direito divino. O eurocentrismo, uma espécie de verdade absoluta, especialmente após a expulsão dos árabes da Penísula Ibérica. Até mesmo foi necessária uma posição oficial da Igreja para se afirmar que os índios possuíam alma. Até hoje, quando temos no Brasil uma democracia, as nações indígenas ainda vivem sob muita opressão, apesar dos esforços para integrá-los, de alguma forma, em nossa sociedade. Uma integração ainda precária e especialmente difícil, por não se saber exatamente quais seus parâmetros.
A imagem romântica do índio também é de certa forma reescrita no livro, já que descreve actos bárbaros cometidos por eles. No final, somos todos humanos? No fundo o que conta é a sobrevivência?
A ideia romântica do homem bom de Rousseau, que permeou a literatura romântica do século XIX, era apenas isso: romantismo. Os índios, em suas diversas nações, com hábitos culturais diferentes, eram guerreiros que buscavam viver em segurança em suas pequenas aldeias. E com isso guerreavam constantemente outras nações, seja para conquistar algum bem, seja como defesa preventiva contra futuros ataques. Como todos nós, esses homens lutavam para sobreviver em ambientes hostis - florestas, alagados, campos desertos. Enfrentavam uma natureza que, embora exuberante, exigia enorme esforço para dela tirar seus alimentos e remédios. Portanto, como todos os seres humanos, praticavam sim actos que consideramos bárbaros, actos que povoam ainda hoje os jornais e tvs de todo o mundo, cometidos por traficantes, piratas e também por grandes estados organizados, que não hesitam em matar e trucidar populações em nome de ideologias das mais estapafúrdias – sejam elas de origem religiosa ou económica.
A problemática indígena ainda assola a consciência brasileira? O Brasil não respeita as suas origens?
Ainda temos muitas dificuldades em conviver com nossos indígenas. É raro encontrar brasileiros das grandes cidades que se considerem descendentes dos primitivos habitantes do Brasil. A maioria tem suas origens na Europa ou na África. Aos índios resta viverem em pobres aldeias espalhadas por todo o país, sem trabalho certo, contando apenas com o precário apoio do governo federal. Ainda temos muitos preconceitos: a ideia de que os índios são como meninos que precisam ser protegidos deles mesmos, castigados como crianças quando cometem erros, que têm vocação para o alcoolismo, que não gostam de trabalhar. Preconceitos nascidos num passado distante e que, infelizmente, continuam no imaginário de boa parte dos brasileiros.
Como essa mesma comunidade vê o homem branco nos nossos dias?
Depois de tantos séculos de humilhação, a visão de boa parte das nações indígenas do branco não poderia ser outra senão a do explorador. Em algumas regiões há uma convivência razoável entre índios e comunidades pobres – tanto na periferia de grandes cidades como em pequenas vilas do interior. Eles se identificam pela pobreza – índios, negros, mulatos, cafuzos e brancos. Em outras regiões, especialmente na Amazônia, há grandes conflitos entre índios e fazendeiros que se apossam de suas terras. São conflitos armados, onde ainda acontecem mortes e assassinatos.
Acredita que os índios fugiram das florestas para a civilização por medo ou por curiosidade?
Na verdade, não existiu essa fuga em massa. Apenas alguns indivíduos de umas tantas nações fizeram essa migração. A maioria dos índios foram, em realidade, cercados e empurrados pelas cidades e pelas fazendas. Não tiveram opção.
As nações têm responsabilidade para com os índios?
Têm! E muita, uma vez que ocuparam seus territórios, destruíram aldeias, nações inteiras. É uma espécie de culpa coletiva, pois seja na América, seja na África a destruição sistemática dos habitantes primitivos, a retirada de suas riquezas naturais é que financiaram a Europa dita civilizada.
O personagem Pierre é um ideólogo ou um homem sem futuro?
Provavelmente nenhum dos dois. Sua ideologia incipiente nasceu da própria consciência de suas origens e não de uma reflexão profunda e filosófica sobre o homem. E seu futuro será o futuro de sua nação guarani, que persiste viva em muitas regiões da América do Sul. E, aos poucos, havendo mais consciência e mais integração, esse futuro pode ser o mesmo futuro dos outros habitantes do Brasil e do Paraguai.
Ele procura encontrar as suas origens e quando as encontra acaba por não as negar. Isso é fundamental no ser humano, não negar o que é?
Imagino que seja essa a única maneira de sobreviver – pelo menos emocionalmente. Julgo que muitos dos problemas que enfrentamos nas grandes cidades brasileiras, especialmente as favelas, onde a violência entre os jovens é extrema, tem sua origem na falta de identidade desses jovens com sua cidade. Seus pais vieram de regiões distantes, do Nordeste seco, de regiões inférteis do país, em busca de melhores condições de vida. Nas cidades encontraram apenas sub-empregos e condições absurdas de moradia. A cidade os afastou em guetos nos morros. Seus filhos não tiveram opção: rejeitados pelas cidades, criaram seu próprio universo de violência. Como os índios, não conseguem se integrar. Não sabem quem são, não conhecem direito suas origens.
O «Rastro do Jaguar» é um grito contra a indiferença?
Espero que seja, sim. Afinal, um romance deve ter um papel social, de pelo menos levar as pessoas a reflectir sobre a realidade que as cerca, ou quem sabe sobre sua própria vida, suas emoções.
E acredita que o livro, assim como a literatura, tem um papel fulcral nas grandes questões mundiais?
Penso que a literatura é o reflexo mais claro dos momentos vividos pelas sociedades. Como o jornalismo – mas com mais profundidade – serve de instrumento de reflexão, quando não de denúncia, mesmo que aborde temas introspectivos, como as angústias humanas. O «Rastro do Jaguar» busca não apenas discutir um assunto pouco tocado na literatura brasileira, mas também falar das emoções, da música, da profunda humanidade que cerca cada um dos personagens.
Qual a importância de relembrar a história dos índios nos nossos dias?
Na verdade, a história desse passado recente, de que trato no livro, é ainda a história que continua a rodar por boa parte do país. A roda da história não parou atrás: segue quase da mesma forma pelos sertões brasileiros. Por isso, nem acho que seja uma relembrança, mas a imagem vista por um retrovisor que se repete diante de nossos olhos.
A obra de Aleijadinho também é determinante no livro? É uma pessoa religiosa?
A religião, em Aleijadinho, era parte fundamental do período barroco em que viveu. Ele é filho de duas raças religiosamente místicas: portugueses e negros. Mas sua religião era um tanto amarga, agressiva, que ele procurou sublimar em sua arte. Não sou, especialmente, religioso. Na verdade, não tenho religião alguma. Mas é impossível ignorar a religião como formadora de nossas nações. Os profetas de Aleijadinho reflectem esse tipo de crença e, de certa forma, se fundem com os mitos guarani e seus profetas guerreiros.
E o personagem Pereira, apesar de não ser uma pessoa crente, acaba por ter uma relação especial com a obra de Aleijadinho. Como explica isso?
Nasci nas montanhas de Minas Gerais, desde garoto estive envolvido por essa aura de religiosidade que se reflecte na obra de Aleijadinho. Herança de avós portugueses, que se fixaram nesta parte do mundo. Além disso, Minas Gerais é onde o barroco teve seu auge no Brasil. Seja nas obras de escultores como Aleijadinho ou na música sacra, que desde pequeno se ouve nas igrejas. Isso, de certa forma, marcou minha infância.
Porquê um romance apenas aos 60 anos?
Na verdade, o «Rastro do Jaguar» começou a ser escrito há cinco anos. Não sei se 55 é muito diferente de 60 anos. Mas ao longo da minha vida escrevi outras obras de ficção, especialmente contos: foram dois livros – «Raízes da Morte» e «A Cara Engraçada do Medo», publicados no final da década de 1970. Depois, como jornalista, passei longos anos trabalhando no que chamamos no Brasil de imprensa alternativa: jornais que se opunham aos ditadores militares e que passaram a maior parte de sua existência sob censura prévia. Nesse período o meu ofício era percorrer o Brasil, seus sertões, escrevendo sobre o povo oprimido. Para tentar reduzir o peso da censura, escrevia, a pedido dos editores, num tom um tanto literário. Mesmo assim, a censura foi implacável no principal jornal onde trabalhei – Movimento. Nesses anos a realidade tornou-se, para mim, mais importante do que a ficção. Alguns livros de reportagens foram publicados: «Cenas Brasileiras», «Histórias de Trabalhador», «Sangue da Terra», «A Luta Armada e o Campo» e outros, sempre ligados ao dia-a-dia do povo brasileiro. Nos últimos cinco anos voltei às sendas da ficção, com o «Rastro do Jaguar» e uma coleção de cinco volumes de uma obra juvenil, que serão publicados brevemente.
Já está a escrever outro livro?
Sim, tenho dois outros romances sendo finalizados. Espero tê-los prontos até o final de 2010.
O que está a ler neste momento e um livro que o marcou nos últimos tempos?
Como muitos amigos escritores, sempre estou a ler dois ou três livros ao mesmo tempo. Agora estou relendo a obra toda de Eça de Queirós; um trabalho pouco conhecido do filósofo checo, naturalizado brasileiro, Vilem Flusser, chamado «A Caixa Preta», sobre fotografia; e meu poeta brasileiro preferido, bem actual, o gaúcho Luiz de Miranda, com sua «Trilogia da Casa de Deus».
Um nome a descobrir?
Roniwalter Jatobá, escritor brasileiro com uma obra sólida, ainda pouco conhecido em Portugal. Indico «Ciriaco Martins e outras histórias», de contos, e um trabalho histórico excepcional, «O Jovem JK – biografia do ex-presidente Juscelino Kubistchek, construtor de Brasília».

http://diariodigital.sapo.pt/news.asp?section_id=4&id_news=389659
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