Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

23/05/2009

Chico Buarque: o músico que escreve livros

Falar de Chico Buarque é descobrir a riqueza de músicas, poemas, dramaturgias e romances construídos e vividos ao longo de cerca de 60 anos. O autor de «A Banda» é um contador de histórias, sempre trabalhadas por uma poderosa imaginação e marcadas pela cultura popular brasileira. Definindo-se como “um músico que escreve livros”. Entrevista de: Ricardo Paulouro
Chico entregou-se à literatura e ao romance em 1991, com a publicação de Estorvo. Quatro anos depois seguiu-se Benjamin e em 2003, com Budapeste, consagrou definitivamente o trabalho de artesão da palavra que já se vinha esboçando. As palavras cirúrgicas, meticulosamente dispostas como num puzzle, o discreto humor de quem gosta de se surpreender com a escrita e com a leitura, justificam, por exemplo, o sucesso deste seu último romance, traduzido em mais de 20 línguas. A música, tal como a literatura, é, para Chico, uma reaprendizagem constante. Ambas as vertentes da sua obra são como um mosaico, um fio que se vai tecendo com o rigor e o engenho dos mestres. Carioca é por isso uma homenagem ao Rio de Janeiro. Um presente para a cidade daquele que é uma referência obrigatória da música brasileira mas também já da literaturaEm São Paulo, na sua adolescência, Chico Buarque era conhecido como «o carioca». O cd homónimo, Carioca, assinala o seu regresso à música depois de se ter repensado na escrita com o último livro, Budapeste, aclamado pela crítica. As palavras cirúrgicas, meticulosamente dispostas como num puzzle, o discreto humor de quem gosta de se surpreender com a escrita e com a leitura, justificam, por exemplo, o sucesso deste seu último romance, traduzido em mais de 20 línguas. A música, tal como a literatura, é, para Chico, uma reaprendizagem constante. Ambas as vertentes da sua obra são como um mosaico, um fio que se vai tecendo com o rigor e o engenho dos mestres

Disse recentemente: “Não escolhi a música como carreira, a música é que me escolheu”. Quando é que a música surgiu no seu percurso?
CHICO BUARQUE – Sou um músico que escreve livros. Tenho conseguido alternar os dois trabalhos que, para mim, são bastante diferentes. Nesta fase já não sei se distraio o compositor escrevendo livros ou vice-versa porque o tempo e a minha cabeça ocupam-se igualmente das duas coisas. Mas sempre separadamente.

Quando é que o Chico Buarque sentiu essa atracção pela literatura?
Esse interesse vem desde muito novo. A literatura talvez não seja anterior à atracção pela música, mas a ideia de ser escritor surgiu antes da vontade de ser músico. Quando era muito jovem escrevia em jornais de colégio, escrevia crónicas, cheguei mesmo a publicar um conto (Ulisses) no Estado de S. Paulo. A intenção de me tornar um escritor já estava aí, de algum modo, presente. No entanto, em São Paulo, a cidade onde estudava, não havia uma boa escola de Letras que me tornasse um escritor. Curiosamente, eu sou filho de um escritor. O meu pai era professor, foi director de um museu, foi crítico literário… Mas a verdade é que o trabalho que mais ocupava o seu tempo era aquele que não era remunerado. No Brasil é difícil viver da escrita.

Foi esse conjunto de circunstâncias que o levou a ingressar num Curso Superior de Arquitectura?
Sim, a escola de Arquitectura era uma instituição séria e, de alguma forma, ligada ao mundo das artes. Já nessa altura tocava violão e a Arquitectura não me impediu de fazer música. Certo dia gravei algumas canções que me transformaram num músico e num compositor profissional. Mas eu não me preparei para isso, nem tinha conhecimentos técnicos que fizessem prever que me fosse tornar músico. Só o tempo e a experiência permitiram aperfeiçoar a minha técnica musical. Talvez estivesse mais preparado para escrever do que para fazer canções!

Disse uma vez que a música o tinha roubado à literatura…
Acho que isso aconteceu um pouco com toda a minha geração. Aquele momento da música popular brasileira foi marcante. Possíveis vocações literárias, cinematográficas ou teatrais convergiram para a música. Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo e tantos outros da minha geração estudavam nas áreas mais diversas, desde Engenharia a crítica de cinema, como era, por exemplo, o caso do Caetano Veloso. Todos eles foram atraídos pela Bossa Nova e por João Gilberto. Também eu abandonei a ideia de escrever. Ainda escrevi para teatro mas considero essa vertente um complemento ao meu trabalho musical. Os diálogos eram uma espécie de costuras entre canções. O escritor ficou adormecido durante todo este tempo. Eu nunca imaginei voltar à literatura, à excepção de uma novela escrita em 73 ou 74 chamada Fazenda Modelo, que foi escrita como um “desafogo”…
Esse desejo de liberdade era motivado pela censura que se vivia no país?
Sim, a censura era muito rígida, mas mais direccionada para a música, televisão e cinema. No entanto, não existia censura prévia na literatura. A Fazenda Modelo acabou por ser um artifício para dizer coisas que não podiam ser ditas através da música. Este é, por isso, um livro com uma motivação política muito evidente. Mais tarde, quando escrevi o meu primeiro romance, Estorvo, a motivação foi muito diferente. Nada me motivou a escrever o livro senão a própria literatura.

Em Budapeste cria um José Costa fascinado pela palavra. Também no romance é a melodia da palavra que lhe interessa?
De facto, a música e a literatura estão absolutamente separadas no tempo. Eu não ouço música quando escrevo mas não posso deixar de reconhecer que a música está presente na minha literatura. Acredito que haja uma lógica musical na escrita mas mais até do que escrever, o meu grande prazer é ler. O trabalho de escrita é um trabalho quotidiano. Todas as noites, antes de dormir, o meu verdadeiro momento de prazer era ler o que tinha escrito. Prazer ou não… [risos] porque, fechada a oficina, impresso o trabalho atentamente lido na cama, o dia seguinte revelava um texto todo ele reescrito ou rasurado.
Este é quase um critério de músico…
É isso mesmo. As palavras estavam lá, a história também mas havia uma insatisfação motivada por uma palavra a mais ou a menos, o ritmo errado. Nessa altura recomeçava o dia a remexer nesse quebra-cabeças.
Esse trabalho de depuração é mais facilmente conseguido no verso ou na prosa?
Na realidade a prosa é um processo de criação completamente distinto do verso. Só escrevo versos para uma música já existente e não o contrário porque os versos existem apenas para se encaixarem na melodia. No caso da prosa, é um processo quase instintivo. Apenas sei que algo me incomoda e me compele a reescrever porque quer na prosa, quer no verso, sou movido por um rigor sem contornos muito definidos.
Um livro da sua juventude que o tenha especialmente marcado como leitor.
Eu li muita coisa, de forma indisciplinada, fora do tempo, na minha juventude. Eu tinha uma ambição literária desde muito novo. Talvez por morar numa casa cheia de livros. Tinha a impressão de que queria ler aqueles livros todos! [risos] Lembro-me de ler o Monteiro Lobato, tal como todas as crianças brasileiras. Na escola li a Moreninha, Machado de Assis, A Cidade e as Serras de Eça de Queirós… Numa fase seguinte, lembro-me de ficar entusiasmadíssimo pelo facto de conseguir ler e entender livros em francês. Ter chegado, por exemplo, ao fim dos seis volumes de Guerra e Paz foi para mim uma proeza! [risos]
Também encontra esse prazer da leitura na construção dos seus romances, isto é, diverte-se com a sua escrita?
Divirto-me mais quando leio do que quando escrevo. É curioso porque muitas vezes algumas passagens de livros meus, considerados sombrios, como é o caso de Estorvo, provocam-me o riso. Alguém disse que escrevemos para nos surpreender. É extraordinário quando lemos aquilo que escrevemos e conseguimos achá-lo cómico, bonito ou poético. É claro que até se chegar a esta fase existe um trabalho de reescrita muito grande onde chegam a ser eliminadas dezenas de páginas. Como para mim este é um ofício muito solitário, às vezes não sei se vou terminar o livro que estou a escrever ou se valerá a pena todo aquele trabalho.
O seu último romance, Budapeste, foi um trabalho de maior fôlego…
Demorou dois anos a ser escrito, o dobro do tempo em relação aos livros anteriores. Acho que a grande diferença entre a canção e a prosa, deste ponto de vista, é que a canção demora uma semana, o máximo um mês a ser feita e logo que terminada é mostrada. Porque a canção é exibicionista, quer-se mostrar e permite-nos, de imediato, com esse feed-back, perceber se está ou não bem feita. No caso do romance são dois anos sem o poder mostrar, chegando quase a ser angustiante.
Em Budapeste, por exemplo, há uma ironia muito subtil em relação ao mundo literário, enquadrado num contexto quase mediático…
Às vezes acho até quase salutar que os escritores saiam dessa espécie de toca onde se refugiam mas há que encontrar a medida certa para essa exposição. No momento em que o escritor começar a competir com os artistas do show business perdem-se algumas das características da criação literária. Costumo dizer que a literatura não precisa de se exibir, ao contrário de outras artes. Recentemente têm surgido muitas leituras públicas, motivadas sobretudo por uma influência anglo-saxónica. A primeira vez que estive numa dessas sessões foi na Alemanha, em Colónia. Li um trecho do Estorvo, em Português, o tradutor leu o mesmo trecho em alemão e a plateia estava atenta, como se fosse quase um espectáculo [risos]. No caso específico de Budapeste, a vaidade e a inveja são dois temas muito presentes mas é claro que não são exclusivos da literatura porque estão presentes noutros circuitos artísticos. Talvez no meio literário tenham uma força maior por causa dessa necessidade de aplausos que não existem habitualmente. Ao contrário da música ou das artes plásticas, na literatura um livro é não só escrito como também lido individualmente. É sempre um acto solitário.
O poeta Mário de Sá-Carneiro disse: “Eu não sou eu nem sou o outro. Sou qualquer coisa de intermédio”. Através da palavra, o eu, mesmo que ficcional, é sempre o outro, um duplo?
No caso de Budapeste, o facto de o narrador ser um escritor aproxima-me ainda mais da personagem. Eu não só o entendo como partilho muitos dos seus pontos de vista. Se não conseguirmos chegar desta forma à personagem ela provavelmente não andará. Até começar o livro propriamente dito, não sei quem será o narrador. Talvez porque sempre que começo a escrever não venho de uma experiência literária anterior mas de um período de criação musical. Assim, quando inicio um livro não tenho nada planeado mas sim uma grande vontade de escrever. Antes de ter começado a escrever a primeira frase de Budapeste estive cerca de três meses em preparação, pesquisando, tentando descobrir qual seria o tom do livro e quem seria a pessoa que o iria escrever. A personagem do escritor, em Budapeste, não surgiu logo de início. Depois de muita reescrita surgiu inexplicavelmente aquele momento que é a chave da história. Nesse instante peguei a mão do escritor e passei a ser esse intermediário: não sou eu mas na realidade também não sou o José Costa. É o ghost writer do José Costa.

José Saramago disse a propósito de Budapeste que esta obra gira em torno de duas grandes questões: o que é a realidade? Quem sou eu? Esta é a grande busca de quem escreve?
Não sei… Acho que apesar de ser meu leitor nunca fico com a ideia do livro como um todo, na medida em que o trabalho como se fosse algo artesanal, um mosaico. Acontece-me muitas vezes mexer nessa peça e aperceber-me que, por algum motivo, ela não funciona. Descubro então que esse mau funcionamento se deve a algum problema anterior e o meu papel é o de consertar, reescrever. Trabalho assim mais a minúcia do que o geral. Quando a linguagem não está boa, a história tem que ser mais trabalhada. Mesmo tendo um roteiro de escrita, esse roteiro é infringido sempre e, logo, existe uma busca constante – a busca pela palavra.
Em Budapeste, no Estorvo e em Benjamin existe, até mesmo do ponto de vista formal, uma sensação de vertigem e fuga muito forte. Do que é que as personagens fogem?
Nunca pensei muito nesse aspecto mas de facto as personagens estão sempre em trânsito… Acho que pode ser tanto uma qualidade como um defeito. O escritor exige sempre muito do leitor. O leitor menos atento ou interessado não vai certamente seguir esse fluxo e acaba por perder a história. No entanto, isto é algo que também me preocupa porque a pouca vontade de explicar certas coisas enquanto escrevo acaba por dificultar a leitura a muitas pessoas. E é sempre difícil exigir do leitor essa atenção porque na leitura existem paragens, as pessoas vão lendo e integrando o livro nos tempos livres do seu quotidiano. Ás vezes pensava que estava a escrever como quem escreve uma canção ou uma partitura que determina o andamento de como aquela música vai ser executada. No entanto, não há um manual sobre como ler um livro.
A escrita é, para si, um ofício solitário?
Absolutamente. Até mesmo a própria escrita de canções. Mesmo que eu escreva a quatro mãos, em parceria, o momento da escrita é solitário.
Tem ideia do número de línguas em que está traduzido o Budapeste?
O número exacto não sei mas em mais de 20 línguas. O Estorvo foi editado em quase toda a Europa Ocidental. Budapeste foi um pouco mais além, para o leste europeu, Israel, Japão…
Costuma acompanhar a tradução dos seus livros?
Durante o ano seguinte à saída do livro no Brasil acompanho as traduções das línguas que sei, em francês, inglês, italiano e espanhol. Nestes casos posso sugerir, dar palpites, identificar alguns equívocos de compreensão. Noutras traduções, como é o caso da tradução húngara, já não posso ajudar. No entanto devo dizer que a melhor tradução de capa do Budapeste é a húngara! [risos]
Para além da música e do romance, Chico Buarque tem também uma vertente de cronista, lembrando as crónicas sobre futebol que escreveu…
Essas crónicas foram escritas para a Copa de 98. Antes disso tinha escrito alguma coisa para o Pasquim, um jornal de uma cooperativa de jornalistas brasileiros de oposição à ditadura. Durante o período em que vivi em Roma colaborei pontualmente com este jornal. Por ocasião da Copa de 98 contrataram-me para escrever sobre futebol, o que para mim foi um prazer poder assistir aos jogos na tribuna. Tinha de escrever apenas uma vez por semana mas ao meu lado estavam todos os outros jornalistas desportivos que escreviam diariamente.
“Cada vez que volto não sei mais onde estava, é um recomeço”. Este é agora um recomeço literário ou musical?
A certeza com que fico depois de escrever um livro é que tenho de fazer música, até reaprender. É algo penoso porque demora a apanhar novamente o jeito mas é bom porque tenho a impressão de que recomeço sem vícios. Neste momento, as canções que procuro agora escrever têm pouco a ver com aquelas que escrevi há cinco anos atrás.

Entrevista publicada na revista “Textos e Pretextos”, nº7
http://www.a23online.com/portal/?p=1340
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