Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

18/05/2009

"Professores, deixem Alencar em paz"

"Professores, deixem Alencar em paz"
Biografar é retirar o mito de um pedestal. O jornalista e escritor cearense Lira Neto aceitou as provocação de narrar a história de um dos maiores escritores brasileiros, José de Alencar
"Numa época em que se dizia que amantes de sacerdotes viravam mulas-sem-cabeça e pariam lobisomens, José de Alencar era conhecido, desde sempre, como 'o filho do padre'". Trecho do livro O Inimigo do Rei, de Lira Neto.
A primeira preocupação de Lira Neto ao narrar a vida de José de Alencar foi retirá-lo do pedestal. "Trazê-lo ao nível da vida cotidiana, com suas circunstâncias mais comezinhas. Só assim podemos entender como se deu a construção do mito", escreve o jornalista cearense em entrevista por e-mail ao O POVO, de São Paulo, onde reside atualmente. Lira Neto encarou a peleja de fazer um longo caminho até o século XIX e juntar o quanto podia de documentação dos curtos e profícuos 48 anos de vida do cearense de Messejana, nascido pelo avesso, filho de padre. Alcançou, ainda, um período anterior para falar do pai do escritor, que além de padre, era senador: Martiniano de Alencar e suas infindáveis conspirações e feitos políticos.
O resultado foi o livro O Inimigo do Rei: Uma biografia de José de Alencar ou a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos, azucrinava D. Pedro II e acabou inventando o Brasil (Editora Globo, 2006), agraciado em 2007 foi com o Prêmio Jabuti de Literatura, na categoria melhor biografia do ano. Não à toa. O jornalista conseguiu trazer a vida de um dos maiores escritores do romantismo brasileiro para bem perto da humanização. O caráter polêmico e a personalidade ensimesmada de alguém que, com pena em punho, foi capaz de elaborar os textos mais leves e satíricos, provocar políticos e, inclusive, o imperador dom Pedro II.
Longe da pecha de escritor açucarado, Lira Neto nos apresenta a alguém de verve inquieta, que mexia em casa de marimbondos. Um escritor que tinha um plano de inaugurar e elaborar uma escrita que seria nacional, com temas essencialmente brasileiros, até alcançar esse caminho com a prosa em poesia de O Guarani e Iracema. "Seu objetivo era um só: introduzir o conceito de nacionalidade entre nós. Por isso, no subtítulo do livro, digo que ele 'acabou inventando o Brasil'", diz Lira Neto.
Na entrevista a seguir, Lira Neto percorre algumas das facetas do escritor mais afamado do Ceará. Entre elas, a influência que José de Alencar exercia sobre Machado de Assis, tal como mestre e discípulo. O jornalista aproveita para pôr em questão um aspecto da atualidade comum à grande parte das pessoas que são apresentadas, ainda na juventude, à obra do escritor cearense. "Querem que pobres meninos e meninas indefesas leiam textos do século XIX sem nenhum trabalho prévio. Depois não entendem porque os alunos não gostam de ler mais nada para o resto da vida. Ora, a literatura de Alencar - assim como a de Machado e a de outros clássicos literários - é ministrada aos jovens como uma espécie de purgante, um remédio contra lombrigas. Professores de língua portuguesa, façam-nos o grande favor: deixem Alencar em paz!".
O POVO - O senhor se debruçou em ampla pesquisa, recolhendo dados até tecer a história do escritor José de Alencar. Que riscos você previa em narrar a vida de alguém que é um verdadeiro mito para o Ceará, mas com vida e personalidade tão controversas?
Lira Neto - Minha obrigação básica, como biógrafo, é humanizar o biografado. Muita gente apressada confunde "humanizar" com a ideia de olhar o biografado de forma complacente, de fazê-lo "bonzinho". É exatamente o contrário. É fazê-lo descer do pedestal, trazê-lo ao nível da vida cotidiana, com suas circunstâncias mais comezinhas. Só assim podemos entender como se deu a construção do mito. No caso específico de Alencar, o que me interessou foi exatamente sua personalidade contraditória, seu poder de gerar controvérsia. O maior risco seria cair na bobagem de continuar apresentando Alencar como um romancista açucarado, como a escola geralmente faz. Por isso, ao escolher a imagem da capa do livro, optou-se por uma charge de época, que mostra um Alencar buliçoso, mexendo em uma caixa de maribondos. Esta era a imagem que os contemporâneos tinham dele. Um criador de casos, um fazedor de encrencas. Nisso, ele era genial, imbatível.
OP - Em seu livro, fica evidente que José de Alencar recebeu do pai muitas heranças, entre elas a política e o caráter volátil de posicionamento, ora a favor de conservadores, ora de liberais. José de Alencar carregava o peso do prestígio político deixado pelo pai?
Lira Neto - O pai de José de Alencar, o padre e senador Martiniano de Alencar, daria uma biografia maravilhosa. É um personagem extraordinário. Um padre com uma penca de filhos, a partir de cuja trajetória é possível contar a história da Revolução do Equador, do Primeiro Império, da Regência, do golpe da Maioridade. Um personagem realmente fantástico, uma vida cheia de reviravoltas, de trocas de posição, de contradições pessoais. Há um livro aí, sem dúvida, pedindo para ser escrito. Como primogênito de um político de tal envergadura, cabia naturalmente a José de Alencar a missão de dar prosseguimento à carreira do pai. Mas as muitas desavenças com o imperador Pedro II impediram-no de chegar ao senado, como tanto almejava, para tentar repetir os passos de Martiniano. Porém, ainda assim, José de Alencar foi um político de muito prestígio e influência. Foi deputado e ministro da Justiça do Império. Um ministro polêmico. Não podia ser diferente. Era polêmico em tudo o que fazia.
OP - José de Alencar foi filho de padre e isso teria deixado consequências na vida do escritor. Causa, talvez, se sua personalidade reservada. Como isso se moldava em sua literatura, já que ele trazia escritos, muitas vezes, bem humorados e leves, que não condiziam com suas atitudes?
Lira Neto - O mais surpreendente em José de Alencar era como aquele sujeitinho enjoado, taciturno, reservado, aquele homenzinho casmurro se transformava em outra pessoa com a pena e o papel nas mãos. Suas crônicas jornalísticas eram deliciosamente leves. Mas, mesmo nelas, estava presente o tom satírico, a verve incorrigível, a visão aguda do polemista profissional. Realmente, só uma coisa o tirava do sério: bastava alguém fazer qualquer referência, por mais oblíqua que fosse, a respeito da circunstância familiar de ele ser filho de padre. Certa feita, quase trocou sopapos, no parlamento, por que um colega deputado ousou tocar em tal assunto.
OP - O poder político e econômico da família Alencar ajudou a consagrar a sua literatura? E ser jornalista, que influência deve na decisão da vida política do escritor?
Lira Neto - Alencar construiu a carreira literária ao largo do poder político e econômico da família. Uma coisa não tem relação com a outra. Na verdade, no Rio de Janeiro, ele era apenas um bacharel remediado. Chegou a amargar uma grande decepção amorosa porque a família da pretendente não queria ver a filha casada com um advogadozinho barbudo e sem maior expressão na sociedade da então capital federal. Foi no jornalismo que Alencar se fez conhecido. Foi nos rodapés literários e nos textos de combate que sua voz passou a ser ouvida. Quando estreou na política, já era um escritor e um jornalista consagrado, ao ponto de muitos colegas olharem para ele ressabiados: o que aquele "mero autor de folhetins" estava fazendo no parlamento?
OP - O escritor cearense escondia seus primeiros inscritos ou assinava com pseudônimos, por achar que eles não correspondiam à expectativa própria de criar uma nova literatura? O senhor acredita que ele já escreveu alçando ser um grande nome na literatura brasileira? Ele imaginava que isso viria com Iracema?
Lira Neto - Alguns dos principais romances de Alencar foram escritos no cotidiano das redações de jornal. Escreveu vários capítulos em cima da perna, na hora de mandar o texto para a impressão. O Guarani, uma de suas obras-prima, aquela que lhe trouxe a primeira grande glória literária, foi escrito assim. Os pseudônimos de Alencar, na verdade, serviram a vários propósitos. Em alguns romances mais apressados, obras de ocasião, para disfarçar realmente a autoria. Nos primeiros textos de polêmica, para ocultar que ele então era apenas um fedelho duelando com figurões das letras nacionais, como Gonçalves de Magalhães. A partir de certo momento, Alencar realmente começou a planejar a construção de uma literatura genuinamente nacional. Daí por diante, dedicou a vida inteira a isso, abertamente. A obra de Alencar, em conjunto, é um monumento. Seu objetivo era um só: introduzir o conceito de nacionalidade entre nós. Por isso, no subtítulo do livro, digo que ele "acabou inventando o Brasil".
OP - Machado de Assis era um forte admirador de José de Alencar. Especula-se, inclusive, que José de Alencar tinha pretensões de tornar-se realista, talvez o primeiro. O senhor alcançou algum registro em relação a essa intenção?
Lira Neto - Acredito que José de Alencar era, essencialmente, um romântico. Até seus últimos escritos em prosa, continuará fiel ao romantismo. É sintomática a reação que demonstrou durante a viagem que fez a Londres, já próximo à morte. Chegou à Europa em plena Revolução Industrial. Espantou-se com o burburinho das ruas, assustou-se com o metrô, sentiu-se desajustado naquele cenário. Assumiu-se como um homem de espírito inadequado para os novos tempos que chegavam. Sua derradeira polêmica, travada com Joaquim Nabuco, mostra o canto do cisne do último romântico que se sente desafiado pela nova geração. Em contrapartida, é interessante notar que não foi simples coincidência o fato de que Memórias Póstumas de Brás Cubas, livro que representa o abandono machadiano da influência romântica, tenha sido publicado imediatamente após o desaparecimento de Alencar. É fato: Machado só conseguiu se libertar do grande mestre depois de Alencar estar devidamente enterrado embaixo de sete palmos de terra.
OP - A princípio, José de Alencar ironizou o uso de termos indígenas na literatura. Depois, assumiu uma postura nacionalista. De que forma aconteceu essa transição?
Lira Neto - Alencar não era um homem de transições. Preferia os cortes bruscos, a ruptura imediata. De todo modo, os textos em que realmente tripudiava dos termos indígenas eram textos de formação, que inclusive ele fez questão de relegar ao esquecimento. Precisou que o chato de um biógrafo, em pleno século XXI, fosse bisbilhotar antigos jornais para trazê-los à luz novamente. Por vezes, pressente-se que, naqueles textos, Alencar apenas exercia o direito à polêmica e à troça. Tanto é que um de seus primeiros projetos literários era biografar o índio Felipe Camarão. Alencar perdia a razão, mas não perdia a piada.
OP - José de Alencar comprou brigas. Ironizou outros escritores, inclusive o do poema A Confederação dos Tamoios, encomendado pelo imperador a Domingos José Gonçalves de Magalhães para ser um poema inaugural brasileiro. O senhor acredita que essa atitude possa ter por trás um o desejo de vir de Alencar esse texto primeiro?
Lira Neto - Coloquemos as coisas na seguinte perspectiva: Alencar era um jovem jornalista quando resolveu desancar Gonçalves de Magalhães, uma vaca sagrada da literatura de então, o mais erudito e o mais viajado dos escritores brasileiros. A ideia de que Alencar almejasse, naquela idade, escrever ele próprio o poema inaugural brasileiro é uma conclusão arriscada e posterior aos fatos. É um pouco fazer profecia do passado. O fato é que Alencar precisava salvar o Diário do Rio de Janeiro, que ele dirigia e estava à beira da falência. Nada melhor do que uma boa polêmica para atrair a atenção dos leitores. O plano deu certo. Bem mais tarde, é verdade, ele realmente irá querer fazer um poema fundador da nacionalidade, Os Filhos de Tupã. Deu com os burros n'água. Saiu uma versalhada hedionda. Resolveu fazer coisa melhor: escreveu Iracema. Sorte nossa.
OP - A personalidade introspectiva de José de Alencar teria relação com as figuras de mulheres poderosas que ele criou, com Lucíola, do livro homônimo e Aurélia, de Senhora?
Lira Neto - Uma coisa que sempre evito, em todas as biografias, é cair em análises pretensamente psicológicas dos biografados. Geralmente, quando um biógrafo se mete a fazê-lo, comete psicologismo de botequim. Não me atreveria a endossar a conclusão de que está na introspecção de Alencar a suposta gênese da personalidade de seus personagens femininos. Isso eu deixo a cargo dos que em tese teriam repertório suficiente para proceder a análises desse gênero. Sou apenas um repórter. Um mero contador de histórias. É o que sei fazer. Nada mais.
OP - Passados 180 do seu nascimento, José de Alencar deixou para o Ceará duas heranças: a Iracema, mulher que virou símbolo inclusive, da prostituição no Ceará e o Moacir, o primeiro cearense que, a exemplo da geração que viria, é errante e deixa sua terra. O senhor concorda que essas duas feições continuam a acompanhar com força um estigma do povo dessa terra? Como elas se fixaram?
Lira Neto - Mais uma vez, a pergunta lança questões que me parecem estar além da perspectiva do olhar biográfico. Além do mais, sempre tenho muito receio de chancelar conceitos que partem da noção de uma suposta identidade cultural. Mas, vamos lá: as circunstâncias que levaram a índia idealizada por Alencar aos braços de Martim são diferentes daquelas que fazem as meninas da periferia de Fortaleza sentarem no colo dos gringos na Praia de Iracema. Não, nós não estamos condenados a assistir a isso placidamente, como se tal coisa fizesse parte de um atavismo incontornável. Também não precisamos recorrer a uma suposta Síndrome de Pau de Arara para justificar a diáspora cearense. Se a prostituição infantil existe em Fortaleza, se os cearenses se vêem obrigados a migrar em busca de melhores chances profissionais, isso não se dá por causa de um estigma atávico da raça. É por que algo, na condução das políticas públicas na cidade e no estado, continua historicamente enviesado.
OP - José de Alencar tentou definir o Brasil na literatura. Qual a contribuição de José de Alencar para a ideia do caráter de mestiço do povo brasileiro?
Lira Neto - Alencar apostava na diversidade do povo e da cultura brasileira. Ao contrário de acreditar numa suposta identidade nacional, apontava exatamente para nosso multiculturalismo. Por isso escreveu sobre o gaúcho, sobre o sertanejo, sobre o índio, sobre as mocinhas urbanas do Rio de Janeiro... Ele sabia que era impossível reduzir o Brasil a um conceito identitário. A mestiçagem, para ele, em vez de nos tornar semelhantes, só aprofundava ainda mais nossas inúmeras e deliciosas diferenças.
OP - José de Alencar quis fazer da prosa poética uma literatura nacional. Atingir na literatura do Brasil o que os grandes nomes representavam para a França. Ao tentar sair do provincianismo, ele não acabaria sendo colonizador?
Lira Neto - Não vejo como acusar de colonizador ou de colonizado alguém que dedicou a vida inteira ao trabalho árduo de descolonizar uma literatura. Alencar era um inconformista. Um insubmisso intelectual. É esta a maior lição que ele nos legou.
OP - Como foram os seus primeiros contatos com a literatura de José de Alencar?
Lira Neto - Como todas as crianças e adolescentes, fui torturado barbaramente pelos professores que queriam me empurrar Alencar goela abaixo nos tempos de escola. Os colégios prestam um desserviço enorme à literatura. Querem que pobres meninos e meninas indefesas leiam textos do século XIX sem nenhum trabalho prévio. Depois não entendem porque os alunos não gostam de ler mais nada para o resto da vida. Ora, a literatura de Alencar - assim como a de Machado e a de outros clássicos literários - é ministrada aos jovens como uma espécie de purgante, um remédio contra lombrigas. Professores de língua portuguesa, façam-nos o grande favor: deixem Alencar em paz.

http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/874764.html

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