Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

14/05/2009

Entender os "erros" e outras notas

Sirio Possenti
De Campinas (SP)
Reportagem sobre mudanças no vestibular publicada no Correio Popular, de Campinas, no dia 12/05/2009, assinada por Fabiano Ormaneze, inclui a seguinte passagem: "Mudanças neste ano no ENEM e alterações nos principais vestibulares do país, como o da USP, fazem com que cada vez mais o perfil do aluno selecionado para o ensino superior se adeque ao que prevê as bases da educação brasileira" (p. A10). Qualquer colunista da preservação da língua veria aqui dois erros, se fosse mais conservador. E, pelo menos um, se mais liberal, mas não muito.
O programinha de escrever no computador que uso sublinha "adeque" com vermelho, o que significa que a forma não está no dicionário acoplado ao redator, o que quer dizer que ela "não existe". Curiosamente, o mesmo programa tasca um trema sobre o "u", e acentua as formas ditas inexistentes...
O verbo "adequar" é considerado por muitos como defectivo, isto é, não se conjuga em todas as formas possíveis. Não existiriam as chamadas rizotônicas, isto é, com acento no radical, como "adequo, "adequas", "adequa" e, óbvio, "adeque" - todas sublinhadas de vermelho.
Recentemente (Língua nº 39), Josué Machado fez um levantamento em gramáticas e dicionários do tratamento dado a esse verbo. Nem todos o consideram defectivo. O dicionário Houaiss, por exemplo, inclui sua conjugação completa. Mas, como há discrepância, Josué recomenda que o verbo seja considerado defectivo. Achei curioso, mas não me surpreendi: entre uma posição conservadora e uma liberal, os "professores" sempre escolhem a mais conservadora, aquela que acha mais erros. Segundo o Houaiss, o repórter do Correio não errou. Segundo outros, Josué Machado incluído, sim. Se Fabiano estivesse fazendo uma prova e sua sorte dependesse da avaliação desse fato, só lhe restaria rezar.
O outro fato para o qual quero chamar atenção é um exemplo de um caso de que tratei há duas ou três semanas: a concordância ou não do verbo com o sujeito, quando este está posposto: "ao que prevê as bases". De novo, Fabiano dependeria da capacidade de análise gramatical do corretor de sua redação. Ou de uma reza. No jornal, ele passou.
MACHADO
No final do ano passado e começo deste, reli romances do Machado. O motor foi a minissérie Dom Casmurro. Em Memorial de Aires, encontrei dois dados bem curiosos, que então assinalei e hoje comento. Na página 1194 do terceiro volume das obras completas da Aguilar, uma fala de D. Carmo (que Aires chama muitas vezes de "velha"...) inclui um dado que muita gente critica e considera uma das evidências da degradação da língua: "Nem por hora, nem jamais, concluiu dobrando a carta; estou cansada e fraca, conselheiro, e meia doente. Não dou para folias de viagem". Sim, senhores: "meia doente" (aqui, vejo isso sublinhado de verde, indicando erro de gramática). E é do Machado. É verdade que se trata de uma fala de D. Carmo, mas nada, no livro todo, indica que ela seja adepta de fala popular. Ouço dia sim e outro também gente que lamenta que não se escreva mais como o fazia Machado. Não o Josué, o de Assis, o próprio.
O outro dado é de outra ordem, mas também é curioso: "Campos e Aguiar queriam, à sua vez, que o jovem casal viesse aposentar-se em casa deles...". Aposentar-se. De "aposento", certamente, sinônimo de hospedar-se, aposto. Agora vou ao Houaiss, para ver o que ele diz.
Fui: a primeira acepção é "hospedar(-se) em aposento; albergar(-se), alojar(-se). E a abonação: Ex. aposentar um amigo; aposentou-se na casa de um parente".
Duvido que qualquer professor de plantão tenha coragem de corrigir um aluno que escreva que seu pai se aposentou, querendo dizer que parou de trabalhar. Quer dizer que algumas mudanças podem, outras não podem. Estranhos, esses guardiães da língua.
Ah, sim. Confesso que enjoei de tanto ler "esqueceu-me" e "lembrou-me". Machado não variava... Impressionante. E também nisso ninguém o segue. Nem em outras tantas construções, como as seguintes, todas da mesma página: Tudo isso ouvi de noite aos dous velhos; Iam a compras; Não escrevo o que lá se passou para me não demorar a dizer tudo.
 
Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso e Questões para analistas de discurso. 
Fale com Sírio Possenti: siriopossenti@terra.com.br
Fonte: http://terramagazine.com.br

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