Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

08/05/2009

Programa mínimo

Sirio Possenti
De Campinas (SP)
(Em decorrência das notícias sempre ruins sobre os resultados do ENEM e de outras avaliações, e também porque se anunciam programas, mudanças, cursos etc., republico um textinho que tem 10 anos. Talvez o especifique um pouco na próxima semana).
Seria bom poder votar em partidos e programas, para poder cobrar depois. O que nunca ocorre, pelo menos para o povão.
Gostaria de votar em candidatos que tivessem um programa para a escola brasileira. Ainda mais especificamente, um projeto de letramento, ou seja, de inserção efetiva do (aluno) brasileiro no mundo da escrita. Esse programa conteria algumas proibições e alguns pontos de trabalho. O resto decorreria mais ou menos naturalmente. Ou dependeria mais de alterações na ordem econômica que no aparelho escolar.
Algumas proibições: análise gramatical (pelo menos até a quinta série), exercícios de preenchimento, exercícios estruturais. Pela simples razão de que não é assim que se aprende língua.
Alguns pontos de trabalho: a) leitura de material variado (jornal, revista, literatura - especialmente literatura) em alta escala, e na própria escola, tão logo os alunos dominem os mecanismos básicos da língua escrita (antes disso, os professores leriam para eles); b) escrita constante, várias vezes por dia, todos os dias: narrativas, comentários, resumos, paródias, paráfrases, diário, cartas, etc. Muita leitura e muita escrita, simplesmente porque é assim que se aprende; c) como a língua é um lugar de marcação de identidades, frequentemente, de discriminação, a escola seria obrigada a dar ênfase aos aspectos da língua que são pretexto de discriminação social.
Este ponto merece algum detalhamento. Trocado em miúdos, isso significa que, dentre os chamados vulgarmente erros, a escola atacaria em primeiro lugar as construções dialetais que são objeto de discriminação, as formas que os sociolinguistas chamam de marcadores (que alguns falantes usam e outros não, numa mesma região, por critérios como classe social). Por exemplo, formas como "menas", "paiaço", "muié", "carça", construções como "os livro" e "nós vai". Em seguida, a atenção se voltaria para formas linguísticas menos marcadas. Somente depois é que se daria atenção a formas que não são mais socialmente marcadas, ou seja, percebidas como erros.
Seguindo esse critério, só depois de "eliminar" as formas socialmente marcadas é que a escola se dedicaria às formas menos marcadas, dentre as quais as relativas não padrões (o menino que eu falei com ele, a casa que o jardim dela tem uma mangueira), as famosas e cada vez mais frequentes construções em tópico e comentário, semelhantes aos anacolutos (meu time, ele vai precisar de muita sorte) e outras. Finalmente, a escola atacaria formas que ninguém mais nota que estão "erradas", só mesmo os ranzinzas. Aqui, eu incluiria a questão da colocação dos pronomes, certas regências (namorar, preferir) e expressões como "TV em cores". Apenas para evitar que alunos percam concursos porque os autores das provas são idiotas.
Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso e Questões para analistas de discurso.

http://terramagazine.terra.com.br

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