Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

17/03/2009

Narrador nômade

Tiago Coutinho
Milton Hatoum é um andarilho em busca de narrativas. Por onde passa, seus olhos captam histórias sejam elas vividas ou imaginadas. Desde quando saiu de Manaus, há mais de 25 anos, ele caminha pelo mundo a colher imagens para seus relatos. Ao dominar as palavras ganhou reconhecimento, mundo afora, de excelente romancista. Não precisa de muitas linhas para dizer a magnitude deste escritor. Lançou quatro romances e coleciona nada menos do que três prêmios Jabuti - um dos mais importantes no Brasil.
Após consolidado sucesso como romancista, o autor dos premiados Relato de um Certo Oriente (1990), Dois Irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005), inicia 2009 com o seu primeiro livro de contos: A Cidade Ilhada. No entanto, sua carreira em textos curtos já é veterana. Dos relatos apresentados neste novo trabalho, oito foram publicados, alguns inclusive fora do Brasil. “Na década de 90, eu fui escrevendo outros contos para antologias e jornais. Quando eu me dei conta, eu tinha mais de 15 relatos. Fiz uma seleção e publiquei esses 14”.
Na entrevista a seguir, Milton Hatoum apresenta um pouco sobre o seu método de criação. A memória e a infância constituem dois elementos fundamentais na formação de um escritor. Por causa disso, Manaus ainda permanece tão presente em suas histórias. Mas, aos poucos, outras cidades vão ganhando força.
O POVO - Boa parte de seus contos são escritos em primeira pessoa, que ora se confunde com um relato de memória? Como você traça a relação entre memória e ficção na sua obra?
Milton Hatoum - Ficção é memória. É uma memória inventada. O outro nome da memória é a imaginação. Há um momento no centro do Processo, que Kafka diz: “eu gostaria que tudo isso tivesse aparência de verdade”, algo parecido assim. De fato a memória, quando ela é evocada com a inventividade, ela dá impressão de ser mesmo uma verdade. Não me interessa a lembrança específica de uma cena do passado. Interessa alguma memória difusa do que poderia ter acontecido no passado, ou que talvez tenha de fato acontecido. Então, não há ficção sem memória. Claro, há ficção, essa auto-ajuda, mas isso não se pode chamar de ficção. Todos os meus romances, rigorosamente, têm alguma coisa da minha vida, que foi importante para mim e que eu não soube precisar muito bem como lembrança, mas que eu tentei escrever como memória de fundo.
OP - A infância e a língua são dois aspectos que aparecem em A Cidade Ilhada. Como esses dois elementos estão presentes na sua formação?
Milton - A língua é o que há de mais importante para o escritor. A língua e a infância mesmo. A língua, assim como a memória, é a matriz da literatura. A infância, porque você constrói, nesse período, um mundo imaginário. A infância você tem os primeiros prazeres. Tanto na infância como na juventude, pensando uma infância estendida. Você tem os grandes prazeres, algumas decepções, alguns traumas, choques, faz as primeiras amizades. Tudo isso são elementos constitutivos para a tua imaginação. É importante para o escritor sua infância e sua juventude. A língua, a minha língua, pode ser uma escolha também. Alguns escritores renunciaram sua língua materna, mas foram poucos. O Bekcett escreveu em francês e em inglês. O Nabokov... De modo geral, os escritores escrevem na sua língua materna. Eu nasci e cresci em uma família de imigrantes árabe-libanesas, eu ouvia muito árabe. Minha avó é libanesa e falava francês também. Eu até arrisquei escrever alguma coisa em francês, mas foi apenas um surto passageiro. Você encontra mesmo a sua voz, o seu ritmo, a sua melodia, na sua língua. É isso que o escritor faz. Ele tente encontrar a sua voz. Aquilo que o Feline chamava de sua música interior.
OP - Você é um escritor com certo prestígio no exterior e na Europa. No conto Encontros na Península, uma catalã tem curiosidade em Machado de Assis. Como você avalia a recepção da literatura brasileira no exterior?
Milton - Eu não vou considerar o sucesso de auto-ajuda. Não vou considerar o Paulo Coelho. Mas o escritor ainda mais lido no mundo é o Jorge Amado. Incrível isso. Eu tive a sorte de ser traduzido por ótimas editoras nos Estados Unidos e na Europa. E agora mesmo, o Cinzas [do Norte] fez muito sucesso de crítica, nos jornais europeus. Já existem edições de bolso de meus livros na Europa. Na Inglaterra, Itália, Alemanha. Existem escritores mais novos que estão sendo publicados, como Bernardo Carvalho, Luiz Ruffato, Adriana Lunardi. Isso é legal, é tão difícil publicar a literatura brasileira fora do Brasil. O próprio Machado de Assis, nos últimos 10, 15 anos está sendo reeditado. Agora, saiu uma coleção de contos. Ótimas resenhas. A nossa literatura foi muito prejudicada pela própria língua. Falta uma política cultural da língua portuguesa, falada e escrita no Brasil. Nós não temos um Instituto Camões ou um Instituto Cervantes, por exemplo. Poderíamos ter um Instituto Machado de Assis em algumas cidades da Europa ou nos Estados Unidos. Mas aos poucos a literatura começa a ler lida.
OP - O conto Dois poetas da província mostra o anseio de escritores em busca de um mundo fora de Manaus. Você percebe a condição de província na literatura brasileira?
Milton - O lugar onde você nasce é constitutivo para o que você vai escrever para o mundo, para o seu universo ficcional. Ele não é de forma alguma um impedimento para se tornar escritor. Os grandes escritores brasileiros, Graciliano Ramos, Osman Lins, Guimarães Rosa nasceram na província. No interior no Brasil, num Brasil distante. Claro que depois eles viajaram e conheceram o mundo. Isso não é um impedimento. A própria literatura europeia está cheia de escritores que nasceram na província. Flaubert detestava Paris, ele não gostava de ir a Paris, preferia o Oriente Médio. Ele tinha a alma no oriente. O que importa é o texto. Se o texto for bom, cedo ou tarde será publicado por uma boa editora e terá leitores e uma recepção crítica. Eu não acredito que você possa fabricar um escritor. Um escritor de São Paulo e do Rio de Janeiro podem aparecer muito na imprensa, mas se o texto não for bom não adianta nem colocar outdoor com a obra do cara. Não adianta sair na maior revista de circulação elogios rasgados. Os leitores não são bobos. Há bom leitores no Brasil e em todo o Brasil.
OP - A Cidade Ilhada traz muitas cidades, além de Manaus. Como as cidades frequentadas por você interferem no processo de criação?
Milton - Esse livro de contos reflete alguns momentos da minha vida. Alguns momentos de narrador andarilho, de narrador nômade. Morei alguns anos na Europa, em Barcelona, Paris e em Madrid. Isso se reflete em alguns contos. Morei também nos Estados Unidos e tem um conto que reflete um pouco essa experiência americana. Tudo isso é uma segunda parte da minha vida. Tem muita coisa na minha infância que é substancial para a minha narrativa, minha infância manauara, mas tem mais de 25 anos que moro fora de Manaus. Isso vai se refletir cada vez mais no meu trabalho. Como transformar essa experiência em linguagem? É esse o desafio da literatura.
OP - Com essas novas experiências, você acredita que Manaus corre o risco de desaparecer da tua obra?
Milton - Em alguns contos, elas já não existem. Eu acho que em algum momento eu vou... Não vou dizer adeus, mas vou dizer “esperem por mim, eu voltarei um dia”. Eu acho que há narrativas que podem ocorrer sem problemas longe de Manaus. No fundo, o mais importante é a linguagem. Entender como essas narrativas, seja em Manaus, ou fora dela, elas passam ao leitor um poder de convencimento.
OP - Você tem formação acadêmica e intelectual. Alguns de seus personagens são pesquisadores. Essa formação contribui para a tua ficção?
Milton - Eu às vezes sinto falta da sala de aula. Eu aprendi muito como professor. Um professor e um crítico têm que ler o texto sem nenhuma ingenuidade. Com o olhar muito agudo. Buscar as entrelinhas, a dimensão simbólica, social e histórica que existe em cada ficção. Quando eu dava aula de literatura francesa, eu estudava essa literatura. Eu levava a sério tudo isso. Não me prejudicou. Ao contrário, você descobre coisa a cada releitura de um bom livro. Alguma coisa dessa experiência está nos contos. Há um professor personagem no romance Dois Irmãos que é um poeta também. Alguns personagens têm a ver com a minha vida em sala de aula. O problema é que eu sou muito tímido. Não parece, mas eu sou muito tímido. Cada aula que eu dava era um transtorno. Suava frio. Eu não sabia muito como dizer as coisas que eu tinha preparado. Agora, eu me sinto bem vivendo de literatura. A universidade me tirava muito tempo para escrever e para ler. É por isso, talvez, que eu tenha publicado mais. Escrevi Órfãos do Eldorado em pouco dois anos. Isso é surpreendente para quem demorou tanto para escrever Dois Irmãos.
Fonte: http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/863158.html
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