Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

04/02/2009

Mudanças ortográficas no horizonte

Por Carlos Alberto Faraco (UFPR)
As mudanças ortográficas previstas no Acordo assinado pelos países lusófonos em 1990 começam, finalmente, a vigorar. Depois de um longo processo de ratificação do texto do Acordo e dos respectivos termos aditivos, a ortografia unificada começa a ser implantada no Brasil, em Portugal e nos demais países de língua oficial portuguesa.
1. Entenda o caso:
A língua portuguesa teve, desde os anos 40, dois sistemas ortográficos oficiais: o português (adotado também pelos países africanos e pelo Timor) e o brasileiro.
Essa duplicidade decorreu do fracasso do Acordo unificador assinado em 1945: Portugal adotou, mas o Brasil voltou ao seu Formulário ortográfico de 1943.
As diferenças não são substanciais e não impedem a compreensão dos textos escritos numa ou noutra ortografia. No entanto, considera-se que a dupla ortografia dificulta a difusão internacional da língua (por exemplo, os testes de proficiência em português – língua estrangeira têm de ser duplicados; e os documentos das organizações que têm o português como língua oficial têm de aparecer em duas versões, o que aumenta seus custos por exigir sempre duas equipes de redação), além de aumentar os custos editoriais, na medida em que o mesmo livro, para circular em todos os territórios da lusofonia, precisa normalmente ter duas impressões diferentes. O Dicionário Houaiss, por exemplo, foi editado em duas versões ortográficas para poder circular também em Portugal e nos outros países lusófonos. Podemos facilmente imaginar quanto custou essa “brincadeira”.
Essa situação motivou um novo esforço de unificação que se consolidou no Acordo Ortográfico assinado em Lisboa em 1990 por todos os países lusófonos. Na ocasião, estipulou-se a data de 1 de janeiro de 1994 para a entrada em vigor da ortografia unificada, depois de o Acordo ser ratificado pelos parlamentos de todos os países.

Contudo, por várias razões, o processo de ratificação não se deu conforme o esperado. De início, só Portugal o ratificou, seguido, mais tarde, pelo Brasil e por Cabo Verde. Assim, o Acordo não pôde entrar em vigor.
Diante dessa situação, os países lusófonos, numa reunião conjunta em 2004, concordaram que bastaria a manifestação ratificadora de três dos oito países para que o Acordo passasse a vigorar. Esta decisão exigiu nova rodada de ratificações. Brasil e Cabo Verde a cumpriram em 2005. Em novembro de 2006, São Tomé e Príncipe completou seu processo. Com isso, tornou-se exequível  a implantação da ortografia unificada.
O governo brasileiro preferiu, porém, aguardar que Portugal completasse seu processo ratificador para então incluir os termos do Acordo na ordem jurídica nacional.
A Assembleia Nacional Portuguesa se manifestou positivamente em abril de 2008. No segundo semestre do ano passado, o presidente Lula assinou o Decreto que tornou vigente a ortografia unificada a partir de 1/01/2009, instituindo um período de transição de quatro anos (até 31/12/2012) em que a ortografia anterior poderá também ser usada.
Aguarda-se, no momento, a publicação do novo Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras (prometido para fevereiro de 2009) e, ao mesmo tempo, iniciam-se, sob a supervisão da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a elaboração do Vocabulário Ortográfico Comum a todos os países de língua oficial portuguesa.  
Observação importante
A mídia costuma apresentar o Acordo como uma unificação da língua. Há, nessa maneira de abordar o assunto, um grave equívoco. O Acordo não mexe na língua (nem poderia, já que a língua não é passível de ser alterada por leis, decretos e acordos) – ele apenas unifica a ortografia.
Algumas pessoas – por absoluta incompreensão do sentido do Acordo e talvez induzidas por textos imprecisos da imprensa – chegaram a afirmar que a abolição do trema (prevista pelo Acordo) implicaria a mudança da pronúncia das palavras (não diríamos mais o u de lingüiça, por exemplo). Isso não passa de um grosseiro equívoco: o Acordo só altera a forma de grafar algumas palavras. A língua continua a mesma. Não é demais lembrar que o trema não existe em Portugal há meio século sem qualquer implicação sobre a pronúncia das palavras.
2. As mudanças
As mudanças, para nós brasileiros, são poucas. Alcançam a acentuação de algumas palavras e operam algumas simplificações  nas regras de uso do hífen.
2.1. Acentuação
a) fica abolido o trema:
palavras como lingüiça, cinqüenta, seqüestro passam a ser grafadas linguiça, cinquenta, sequestro;
b) desaparece o acento circunflexo do primeiro ‘o’ em palavras terminadas em ‘oo’:
palavras como vôo, enjôo, abençôo passam a ser grafadas voo, enjoo, abençoo;  
c) desaparece o acento circunflexo das formas verbais da terceira pessoa do plural terminadas em –eem:
palavras como lêem, dêem, crêem, vêem passam a ser grafadas leem, deem, creem, veem;
d) deixam de ser acentuados os ditongos abertos éi e ói das palavras paroxítonas:
palavras como idéia, assembléia, heróico, paranóico passam a ser grafadas ideia, assembleia, heroico, paranoico;
e) fica abolido, nas palavras paroxítonas, o acento agudo no i e no u tônicos quando precedidos de ditongo :
palavras como feiúra, baiúca passam a ser grafadas feiura, baiuca;
f) fica abolido, nas formas verbais rizotônicas (que têm o acento tônico na raiz), o acento agudo do u tônico precedido de g ou q e seguido de e ou i.
Essa regra alcança algumas poucas formas de verbos como averiguar, apaziguar, arg(ü/u)ir: averigúe, apazigúe e argúem passam a ser grafadas averigue, apazigue, arguem;
g) deixa de existir o acento agudo ou circunflexo usado para distinguir palavras paroxítonas que, tendo respectivamente vogal tônica aberta ou fechada, são homógrafas de palavras átonas. Assim, deixam de se distinguir pelo acento gráfico:
– para (á), flexão do verbo parar, e para, preposição;
– pela(s) (é), substantivo e flexão do verbo pelar, e pela(s), combinação da preposição per e o artigo a(s);
– polo(s) (ó), substantivo, e polo(s), combinação antiga e popular de por e lo(s);
– pelo (é), flexão de pelar, pelo(s) (ê), substantivo, e pelo(s) combinação da preposição per e o artigo o(s);
– pera (ê), substantivo (fruta), pera (é), substantivo arcaico (pedra) e pera preposição arcaica.
Observação 1
A reforma de 1971 aboliu os acentos circunflexos diferenciais. Manteve apenas para a forma verbal ‘pôde’. O texto do Acordo mantém esta exceção e acrescenta, facultativamente, o uso do acento na palavra fôrma.
Observação 2
O Acordo manteve a duplicidade de acentuação (acento circunflexo ou acento agudo) em palavras como econômico/económico, acadêmico/académico, fêmur/fémur, bebê/bebé.
Entendeu-se que, como esta acentuação reflete o timbre fechado (mais freqüente no Brasil) e o timbre aberto (mais freqüente em Portugal e nos demais países lusófonos) das pronúncias cultas das vogais nestes contextos, ela não deveria ser alterada.
Em princípio nada muda para nós brasileiros. A novidade é que as duas formas passam a ser aceitas em todo o território da lusofonia e devem ambas constar dos dicionários. Assim, se um brasileiro, que hoje é obrigado a usar o acento circunflexo, grafar com o agudo não estará cometendo erro gráfico.
Observação para os especialistas:
Do nosso Formulário Ortográfico de 1943, o Acordo aboliu as seguintes regras de acentuação gráfica:  5ª, 6ª, 10ª, 12ª, a quase totalidade da 15ª, a observação 3ª da regra 7ª e parte da observação 1ª da antiga regra 14ª (esta regra foi abolida pela reforma de 1971. O Acordo abole a acentuação das paroxítonas prevista na observação 1ª).
2.2 O caso do hífen
O hífen é, tradicionalmente, um sinal gráfico mal sistematizado na ortografia da língua portuguesa. O texto do Acordo tentou organizar as regras de modo a tornar seu uso mais racional e simples:
a) manteve sem alteração as disposições anteriores sobre o uso do hífen  nas palavras e expressões compostas. Determinou apenas que se grafe de forma aglutinada certos compostos nos quais se perdeu a noção de composição (mandachuva e paraquedas, por exemplo).
Para saber quais perderão o hífen, teremos de esperar a publicação do novo Vocabulário Ortográfico. É que o texto do Acordo prevê a aglutinação, dá alguns exemplos e termina o enunciado com um etc. – o que, infelizmente, deixa em aberto a questão;
b) no caso de palavras formadas por prefixação, houve as seguintes alterações:
·só se emprega o hífen quando o segundo elemento começa por h
Ex.: pré-história, super-homem, pan-helenismo, semi-hospitalar
Exceção: manteve-se a regra atual que descarta o hífen nas palavras formadas com os prefixos des- e in- e nas quais o segundo elemento perdeu o h inicial (desumano,nábil, inumano).
·e quando o prefixo termina na mesma vogal com que se inicia o segundo elemento
Ex.: contra-almirante, supra-auricular, auto-observação, micro-onda, infra-axilar
Exceção: manteve-se a regra atual em relação ao prefixo co-, que em geral se aglutina com o segundo elemento mesmo quando iniciado por o (coordenação,cooperação,coobrigação)
Com isso, ficou abolido o uso do hífen:
· quando o segundo elemento começa com s ou r, devendo estas consoantes ser duplicadas
Ex.: antirreligioso, antissemita, contrarregra, infrassom.
Exceção: manteve-se o hífen quando os prefixos terminam com r, ou seja, hiper-, inter- e super-
Ex.: hiper-requintado, inter-resistente, super-revista.
·quando o prefixo termina em vogal e o segundo elemento começa com uma vogal diferente
Ex.: extraescolar, aeroespacial, autoestrada, autoaprendizagem, antiaéreo, agroindustrial, hidroelétrica
Observação
Permanecem inalteradas as demais regras do uso do hífen.
2.3. O caso das letras k, w, y
Embora continuem de uso restrito, elas ficam agora incluídas no nosso alfabeto, que passa, então, a ter 26 letras.
Importante deixar claro que essa medida nada altera do que está estabelecido. Apenas fixa a sequência dessas letras para efeitos da listagem alfabética de qualquer natureza. Adotou-se a convenção internacional: o k vem depois do j, o w depois do v e o y depois do x.

2.4. O caso das letras maiúsculas
Se compararmos o disposto no Acordo com o que está definido no Formulário Ortográfico brasileiro de 1943, vamos ver que houve uma simplificação no uso obrigatório das letras maiúsculas. Elas ficaram restritas a nomes próprios de pessoas (João, Maria, Dom Quixote), lugares (Curitiba, Rio de Janeiro), instituições (Instituto Nacional da Seguridade Social, Ministério da Educação) e seres mitológicos (Netuno, Zeus), a nomes de festas (Natal, Páscoa, Ramadão), na designação dos pontos cardeais quando se referem a grandes regiões (Nordeste, Oriente), nas siglas (FAO, ONU), nas iniciais de abreviaturas (Sr., Gen. V. Exª) e nos títulos de periódicos (Folha de S. Paulo, Gazeta do Povo).
Ficou facultativo usar a letra maiúscula nos nomes que designam os domínios do saber (matemática ou Matemática), nos títulos (Cardeal/cardeal Seabra, Doutor/doutor Fernandes, Santa/santa Bárbara) e nas categorizações de logradouros públicos (Rua/rua da Liberdade), de templos (Igreja/igreja do Bonfim) e edifícios (Edifício/edifício Cruzeiro).
2.5. Uma curiosa (e infeliz) determinação
Alegando que o sujeito de uma sentença não pode ser preposicionado, há uma certa tradição gramatical que proíbe, na escrita, a contração da preposição com o artigo ou com o pronome em sentenças como:
Não é fácil de explicar o fato de os professores ganharem tão pouco.
É tempo de ele sair.
Nem todos os gramáticos subscrevem tal proibição. Evanildo Bechara, por exemplo, argumenta, em sua Moderna gramática portuguesa (Rio de Janeiro: Editora Lucerna, 2000, p. 536-7), que ambas as construções são corretas e cita o uso da contração em vários escritores clássicos da língua. No entanto, há uma cláusula do Acordo Ortográfico que adota aquela proibição. Assim, cometeremos, a partir da vigência do Acordo, erro gráfico se fizermos a contração. Parece que alguns filólogos não conseguem mesmo viver sem cultivar alguma picuinha...
2.6. Apreciação Geral
O Acordo é, em geral, positivo. Em primeiro lugar porque unifica a ortografia do português, mesmo mantendo algumas duplicidades (seu objetivo político). Por outro lado, simplifica as regras de acentuação, limpando o Formulário Ortográfico de regras irrelevantes e que alcançam um número muito pequeno de palavras. A simplificação das regras do hífen é também positiva: torna um pouco mais racional o uso deste sinal gráfico.
Carlos Alberto Faraco é Professor Titular (aposentado) de Linguística e Língua Portuguesa da Universidade Federal do Paraná. Membro da Comissão para a Definição da Política de Ensino-Aprendizagem, Pesquisa e Promoção da Língua Portuguesa do Ministério da Educação.Contato: deolhonalingua@ufpr.br
A versão anterior deste texto foi publicada na coluna do prof. Faraco no site da Rádio CBN de Curitiba
Fonte: http://www.letras.ufscar.br/
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