Disciplina - Lingua Portuguesa

Português

06/11/2008

Palavras

Em constante evolução e empregando mecanismos de muita criatividade, uma língua não pára de anexar novos termos, enquanto outros caem no esquecimento.  
Diz quem foi que inventou o analfabeto e ensinou o alfabeto ao professor, indaga o músico e compositor Chico Buarque na canção Almanaque, de 1981. Quem, como Chico, nunca se perguntou onde é que nosso bê-á-bá começou? Pelo menos dois campos do conhecimento podem nos desvendar os segredos das palavras: a etimologia, que se encarrega de explicar a origem e evolução delas, e a filologia, que revela a história dos idiomas. Sendo assim, se alguém pode responder à pergunta do compositor, são os estudiosos dessas áreas. O que se pode adiantar aos interessados no assunto é que há risco de nunca verem saciada sua curiosidade acerca dos caminhos que levam às origens e aos significados das palavras que compõem nossa língua no decorrer do tempo. É como um efeito dominó: uma dúvida leva à outra que leva à outra... Até meados de 2004, por exemplo, não se havia ouvido falar da palavra descatracalização, que pode ser entendida como facilitação  embora um conhecido personagem do cartunista Laerte, chamado justamente Homem-Catraca, já satirizasse, há muito tempo em tiras no jornal Folha de S.Paulo, as inúmeras dificuldades impostas ao indivíduo e à sociedade. No entanto, de repente, o termo estava em artigos de jornais, chegou a ser tema de redação do Vestibular 2005 da FUVEST (Fundação Universitária para o Vestibular) e foi incorporado pela publicidade. Em fevereiro, valendo-se do termo usado na prova, estudantes que protestavam em frente ao prédio da Fuvest, na Cidade Universitária, em São Paulo, atearam fogo a uma catraca. O grupo pedia a descatracalização do ensino superior público. Ou seja, pediam o fim do vestibular; o maior catracalizador para o ingresso às universidades.
Outra invasão recente é a palavra tsunami, que poucas pessoas conheciam até que a onda gigante assolou parte do litoral da Indonésia, Índia e do Sri Lanka em dezembro de 2004.
Hoje, um sistema de busca da internet, como o Google, encontra cerca de 120 mil ocorrências do termo na rede. No entanto, em boa parte dos contextos em que ele surge, é usado por associação de sentido, em expressões como tsunami tributário, emocional e até cinematográfico, como detectou o jornalista Eduardo Martins, autor do Manual de Redação e Estilo do jornal O Estado de S.Paulo. O crítico Ricardo Calil, no site No Mínimo, arrasou o filme mais recente de Oliver Stone, Alexandre, referindo-se a ele como um desastre de proporções épicas, um tsunami cinematográfico', conta.
A dúvida de muitos é: vocábulos que passamos a ouvir há pouco tempo não existiam antes disso? Em muitos casos, existiam, sim, escondidos entre os milhares de verbetes de um dicionário. O Houaiss, por exemplo, acusa a primeira ocorrência de tsunami em 1897. Ao passo que, em São Paulo, já há oito anos circula uma revista de quadrinhos com esse nome. No entanto, há vários meios de enriquecimento do léxico de uma língua. Esse dinamismo que permite a inovação do vocabulário ocorre de várias maneiras”, explica o lingüista Marcos Bagno, professor da Universidade de Brasília (UnB). Pode haver um empréstimo de palavras estrangeiras, atribuição de sentido novo a um termo que já existe, como é o caso do famoso tsunami, ou ainda a criação de um novo termo com base na morfologia [parte da gramática que estuda as classes de palavras] da própria língua.
O caso da descatracalização
É exatamente nesse último mecanismo descrito pelo lingüista que se encaixa a tal da descatracalização, palavra inventada com base em outra que já existe no caso, catraca. Ou, para usar o nome correto que se dá a essas invenções, um neologismo. O neologismo nasce da necessidade que o falante sente de expressar alguma idéia nova ou nomear algum objeto da realidade para o qual a língua não tem palavra, esclarece o professor Bagno. Quando uma dessas inovações é adotada por um número maior de falantes, ela passa a ser de domínio social e ingressa no repertório de recursos verbais da língua.
Tudo começou quando o Sesc São Paulo recebeu uma proposta de um grupo de artistas, chamado Contra Filé, para uma exposição na galeria da unidade Av. Paulista. Posteriormente, entre maio e junho do ano passado, o Contra Filé e mais quatro outros grupos foram convidados pelo Sesc São Paulo para participar do projeto Zona de Ação, parte das atividades do Fórum Cultural Mundial. A idéia era que cada um deles investigasse uma região da cidade e propusesse uma ação local. O grupo Contra Filé foi enviado à Zona Leste. E, mesmo que inicialmente o grupo tenha resistido à idéia de investigar in loco como funciona a vida da região não tínhamos vontade de entender a Zona Leste fisicamente, confessa Cibele Lucena, uma das integrantes , a empreitada deu o que falar. O grupo se reuniu com a equipe de técnicos do Sesc Itaquera e, por meio da unidade, conseguiu chegar até alguns moradores. Começamos a pensar em abordar algo que falasse a todos, continua Cibele. A idéia da descatracalização surgiu a partir desse conflito. Após algumas oficinas e convívio numa região até então desconhecida para os artistas do Contra Filé, eles criaram, junto com os moradores, um programa para a descatracalização da vida  algo como torná-la mais simples e sem entraves, ou, melhor dizendo, sem catracas. Para representar essa idéia, construíram o Monumento à Catraca Invisível. Houve até assembléias públicas para discutir o significado da palavra que acabava de ser inventada. Houve quem enxergasse a catraca como símbolo de algo que emperra, dificulta, conta a artista. E isso pode ser literal ou subjetivo. Existem catracas' que impedem as pessoas de chegar fisicamente a um lugar, radiais, avenidas ou rodoanéis com trânsito difícil. Existem também as catracas sociais, as raciais e as históricas, que dificultam a vida de outras maneiras. O grupo chegou a colocar uma catraca num pedestal no Largo do Arouche. A imprensa ficou sabendo, noticiou o caso e a descatracalização começou a ganhar terreno. Trata-se da inscrição de um fato portador de futuro”, define Jerusa Messina, outra integrante do Contra Filé, numa linguagem um tanto complicada para a proposta do grupo. O fato é que, uma vez estampada nos jornais, a nova palavra chegou, finalmente, à Fuvest, o concorrido vestibular que seleciona os futuros alunos da Universidade de São Paulo (USP).Nosso interesse foi tomando corpo ao nos determos longamente sobre o todo do projeto do grupo artístico Contra Filé”, explica Walkiria Bisaccia, da diretoria da Fundação Universitária para o Vestibular. Daí a cair nas graças da publicidade foi um pulo e acabou estampando outdoors de um banco.
Uma busca na internet permite, ainda, perceber que o vocábulo continua em trânsito. É tema de artigos de lingüistas e ecoa até no ambiente religioso, com pastores que pedem a descatracalização da evangelização, ou seja, a abolição de palavras difíceis durante o culto. Deu para descatracalizar?
Coleção de curiosidades
Conheça a origem de algumas palavras e expressões.
O jornalista Marcelo Duarte, que tem na bagagem 15 anos nas redações das principais revistas brasileiras, há cerca de dez transformou a curiosidade em uma espécie de desdobramento da profissão. Duarte criou a coleção Guia dos Curiosos, série que já está no sexto título e é publicada pela Panda Books. O quinto volume do guia, que trata da língua portuguesa, lançado em 2003, reuniu cerca de 5 mil verbetes pitorescos. Entre eles, a maior palavra da língua portuguesa: pneumoultramicroscopiscossilicovulcanoconiótico, formada por 46 letras, que descreve o estado das pessoas que sofrem de uma doença rara, provocada pela aspiração de cinzas vulcânicas. O autor conta que o volume sobre os bastidores da língua teve origem nas muitas perguntas enviadas ao site www.guiadoscuriosos.com.br. O que eu mais recebia eram perguntas relacionadas à origem de palavras e expressões.  Acabei tomando gosto pelo tema, conta.
Abaixo, algumas das divertidas descobertas que a nossa língua portuguesa reserva.
Fazer nas coxas:  A origem vem da época dos escravos, que usavam as próprias coxas para moldar o barro usado na fabricação das telhas. Como as medidas eram diferentes, as telhas saíam também em formatos desiguais. E o telhado, “feito nas coxas”, acabava torto.
Lua-de-mel: Há mais de 4 mil anos, os habitantes da Babilônia comemoravam a lua-de-mel durante o primeiro mês de casamento. Nesse período, o pai da noiva precisava fornecer ao genro uma bebida alcoólica feita da fermentação do mel. Como eles contavam a passagem do tempo por meio de um calendário lunar, as comemorações ficaram conhecidas como lua-de-mel.
Baderna: Uma bailarina de nome Marietta Baderna fazia muito sucesso no Teatro Alla Scalla, de Milão. Ao apresentar-se no Brasil, em 1851, causou frisson entre seus fãs, logo apelidados de os badernas. O sobrenome da artista, de comportamento liberal demais para os padrões da época, deu origem ao termo que significa confusão, bagunça.
Da cor de burro quando foge:  Por acaso o burro muda de cor quando foge? Na verdade, a tradição oral foi modificando a frase, que inicialmente era corra do burro quando ele foge. O burro enraivecido é mesmo perigoso.
Arco-íris:  Na mitologia grega, Íris era a mensageira da deusa Juno. Como descia do céu num facho de luz e vestia um xale de sete cores, deu origem à palavra arco-íris. A divindade deu origem também ao termo íris, do olho.
Bode expiatório : A expressão significa que alguém recebeu a culpa de algo cometido por outra pessoa. A origem está num rito da tradição judaica. Simbolicamente, o povo depositava todos os seus pecados num bode, que era levado até o deserto e abandonado. Dessa forma, acreditava-se que as pessoas estariam livres de todos os males que tinham feito.
A vaca foi pro brejo:  Faz referência a tempos difíceis, de seca, quando o gado parte em direção a brejos ou terrenos pantanosos em busca de água.
Os termos reproduzidos foram extraídos do livro Guia dos Curiosos  Língua Portuguesa (Panda Books).
(Revista E, n.º 95, SESC )
 
Fonte: http://www.portrasdasletras.com.br
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